Com as panelas de prontidão na cozinha, os argentinos viveram uma tênue trégua durante a semana. Desde segunda-feira 11, quando passou a vigorar o mercado livre de câmbio, o país experimenta uma aparente estabilidade. O risco-país apurado pelo banco J.P. Morgan caiu para 3.940 pontos na sexta-feira 15, contra os 4.013 da quinta. É péssimo, um recorde mundial, mas é a primeira vez desde o agravamento da crise que esse indicador que mede a desconfiança do investidor estrangeiro cai abaixo dos 4.000. A cotação do dólar, que começou em 1,40 peso, alcançou 2,15, variação suficiente para que o presidente Eduardo Duhalde fincasse seus pés bambos no cargo e ganhasse tempo e credibilidade para continuar atrás de uma solução sob a forma de plano para a crise político-econômica que provocou um crescimento de 95,4% na distância entre ricos e pobres nos últimos 12 meses. A diferença entre os dois extremos é de 175,3 vezes, um recorde vergonhoso até em relação ao Brasil, que está longe de ser referência em qualquer índice social, onde a renda dos mais ricos é 45 vezes maior do que a dos mais pobres.

O presidente se desdobra para escapar do destino fatal de seus três antecessores em menos de dois meses: Fernando De la Rúa, Ramon Puerta e Rodriguez Saá. Diz acreditar que a cotação da moeda argentina deve ficar num patamar entre 1,40 peso e 1,70 peso por US$ 1, o que alguns analistas consideram um delírio até que compreensível diante do abatimento que a crise provoca na população. A taxa de desemprego é de 22% e o crescimento do trabalho informal, 28%. Na exuberante Buenos Aires, 11% da população vive com menos de 120 pesos por mês, o que os coloca abaixo da linha da pobreza.

Dos representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington, o ministro da Economia, Jorge Remes Lenicov, só recebeu um tapinha nas costas, um café e um comunicado protocolar que qualifica as reuniões de terça, 12 e quarta-feira, 13, como “muito positivas e cordiais, um bom começo para uma nova relação”. Dinheiro que é bom, só depois que o país cumprir a primeira exigência da cartilha do Fundo: adotar um plano econômico novo ou modificar o velho. E não é pouco o que os argentinos precisam para começar a reconstruir sua economia. Segundo o vice-ministro da Economia, Jorge Todesca, o país precisaria de uma ajuda internacional de US$ 23 bilhões.

A saudável altivez do argentino foi para o beleléu. Diante da prepotência do FMI, o ministro Lenicov, economista de 53 anos, peronista de corpo e alma, teve que falar com todas as letras: “Estamos dispostos a fazer todas as modificações necessárias.” Pior ainda foi a atitude do embaixador argentino em Washington, Diego Guelar: no Valentine’s Day, 14 de fevereiro, o dia dos namorados comemorado nos dois países, ele presenteou o presidente George W. Bush com uma vaquinha de pelúcia, batizada de Valentina. O singelo presente, explicou o embaixador, “será um símbolo da vontade de que, no máximo em um ano, possamos ingressar com carne no mercado americano”. A carne argentina foi banida devido à ocorrência de febre aftosa no ano passado. Mas o embaixador da terra
de Maradona, do escritor Jorge Luis Borges, do pentacampeão na Fórmula 1 Juan Manuel Fangio, de cinco ganhadores do Prêmio Nobel, do bandoneon de Astor Piazzola… extrapolou na escolha do bizarro presentinho. “Que a Valentina se transforme em carne argentina real”, disse eles com entusiasmo.

Sentimento, aliás, não compactuado pelo papa João Paulo II, que, em reunião com bispos argentinos, manifestou sua preocupação com o egoísmo e a corrupção dos dirigentes do país e alertou que a crise põe em perigo a estabilidade democrática e a solidez das instituições públicas, com consequências que vão além das próprias fronteiras. Duhalde pegou carona no alerta do papa: “O sistema democrático argentino está numa crise muito profunda”, disse ele. “Fomos baixando escalões até chegarmos a uma etapa pré-anárquica.”

É péssimo para os 37 milhões de habitantes da Argentina, mas ótimo para investidores viciados em risco, como o megaespeculador George Soros, por exemplo. Na quinta-feira 14, ele anunciou ao presidente Duhalde que deve investir US$ 150 milhões no país (depois de, silenciosamente, ter se desfeito de algumas das grandes propriedades rurais ali adquiridas durante a década de 90) nos próximos três anos no Banco Hipotecário Nacional, em que tem participação acionária, para financiar a construção de casas. Não se trata de uma ação beneficente. Soros tem outros investimentos no setor imobiliário no país e, até hoje, aos 70 anos, não foi visto queimando dinheiro. Qualquer criança desvenda o segredo do negócio: com a economia da Argentina se arrastando, ele põe US$ 150 milhões na crise, um investimento pequeno para quem pilota negócios avaliados em US$ 6 bilhões e, quando o país sair do final do túnel, aumenta sua fortuna.