O anedotário político brasileiro já acumula inúmeros casos de deboche e falta de seriedade no processo eleitoral. Em 1959, a rinoceronte Cacareco conseguiu 100 mil votos em São Paulo. Na redemocratização, em 1988, o chimpanzé Tião reuniu 400 mil votos no Rio de Janeiro — foi o terceiro candidato mais votado à Prefeitura. Virou uma celebridade. O voto eletrônico criou um embaraço, já que exigia do postulante passar pelo crivo da Justiça Eleitoral. O palhaço Tiririca conseguiu, e tornou-se o deputado federal mais votado em 2010, com 1,3 milhão de votos. Uma visão benevolente aponta que esses nomes, humanos ou animais, representam um protesto contra os políticos e o voto obrigatório. Outra, mais realista, que a falta de educação política cria anticandidatos que não representam nenhum programa de governo e buscam apenas pescar votos dados por impulso, de forma oportunista, completamente alheios às necessidades da população.

DILEMA RUSSOMANNO Depende de Bolsonaro para chegar ao segundo turno, mas o presidente é rejeitado por 46%

Em 2020, o fenômeno se dá com 150 candidatos que mimetizam os dois líderes políticos mais populares do País. São ao menos 82 “Bolsonaros” e 76 “Lulas”. Pouquíssimos são de fato parentes do atual presidente, como o primo do mandatário Marcos Bolsonaro (PSL), que mira a Prefeitura de Jaboticabal (SP). E os Lulas se aproveitam da fama do petista para tentar a sorte na política. “É uma forma de chamar a atenção. Normalmente não são candidatos conhecidos. Não acredito que gerem uma quantidade de votos expressiva”, diz o cientista político e consultor Rubens Figueiredo. Em 2018, a tática deu certo para Hélio Lopes, também conhecido como Hélio Negão. Ele usou o codinome “Hélio Bolsonaro” na campanha eleitoral, o que lhe valeu 345 mil votos no Rio e uma cadeira na Câmara dos Deputados. Nesse caso, valeu o apadrinhamento do presidente — é conhecido por posar com o mandatário, o que lhe valeu o apelido de “papagaio de pirata”.

Nas eleições municipais deste ano, poucos candidatos poderiam representar tão bem os péssimos métodos eleitorais e o estado questionável da prática política no País quanto Walderice Santos da Conceição, a Wal do Açaí. Ela ficou famosa por dar ponto como assessora parlamentar no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro em Brasília enquanto comercializava a fruta que lhe valeu o apelido na mesma rua onde ficava a casa de veraneio do mandatário, em Angra dos Reis (RJ). É um deboche. Bolsonaro se elegeu em nome da “nova política”, e agora patrocina seus funcionários-fantasmas. O Ministério Público Federal de Brasília abriu um processo em 2018 para investigá-la. Isso não abalou nem ela nem o presidente. Ela registrou sua candidatura a vereadora este ano usando o nome do padrinho. Agora é Wal Bolsonaro. “É uma pessoa dedicada, trabalhadora, que a exemplo de várias pessoas que estão no entorno do presidente Bolsonaro levam pedrada porque são pessoas honestas e corretas e que só querem fazer o bem ao próximo”, disse Flávio, o 01. Ela concorrerá pelo Republicanos, mesmo partido de Flávio e Carlos Bolsonaro, que também vai concorrer por uma vaga na Câmara dos Vereadores carioca. Rogéria, ex-mulher do presidente e mãe de Flávio, Carlos e Eduardo também é uma “legítima” Bolsonaro e vai concorrer igualmente a vereadora no Rio de Janeiro.

Há outros candidatos mais exóticos que utilizam os nomes famosos sem nenhum tipo de vínculo familiar. João Bolsonaro, Gil do Bolsonaro, Adão Bolsonaro e Gargamelbolsonaro são alguns deles. Rafa Apoiadores de Bolsonaro é de um grupo de apoio ao clã Bolsonaro e exibe com orgulho nas redes sociais uma foto ao lado de Eduardo Bolsonaro. Um candidato a vereador de Brusque (SC) pelo PSL resolveu incorporar os dois ídolos de direita: virou Donald Trump Bolsonaro. Outra candidata teve uma inspiração nas causas do mandatário. Inscreveu-se como Capitã Cloroquina no Rio de Janeiro. Concorre pelo Avante. Já o ex-presidente petista ganhou discípulos como Lula JK, Lula do Lixo e Jane da Vigília Lula Livre.

O cientista político Marco Antonio Teixeira (FGV-EAESP) aponta que a apropriação de nomes como Lula já era generalizada nas últimas eleições. Ele também acha que são candidatos com pouca chance de sucesso. Já para os candidatos “mainstream”, a dúvida sobre a utilização dos padrinhos é um drama real. O caso mais emblemático é o de São Paulo.

Nacionalização

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Celso Russomanno (Republicanos) entrou na disputa instigado pelo presidente, que teme a nacionalização da disputa na cidade. O governador João Doria (PSDB) conseguiu articular uma chapa forte para Bruno Covas, que o sucedeu na prefeitura e busca a reeleição. Ela une dez partidos, incluindo o MDB, de Baleia Rossi, e o DEM, de Rodrigo Maia. Antecipa a disputa pela presidência da Câmara em fevereiro e é o embrião de uma chapa para a próxima campanha presidencial. Se a aposta de Doria der certo, ele se fortalece para concorrer ao Planalto. Por isso Bolsonaro resolveu se mexer, apesar de ter declarado que não iria se envolver nas eleições municipais — Santos e Manaus têm candidatos com seu apoio, mas por uma questão mais pessoal do que estratégica. O presidente conta com Russomanno, que é do mesmo partido de seus filhos Flávio e Carlos. O Republicanos também é uma alternativa para Bolsonaro tentar se reeleger, já que seu Aliança para o Brasil não saiu do papel. “O bolsonarismo não se traduziu em um partido. É uma colcha de retalhos”, diz Teixeira. “A candidatura de Russomanno é um acidente de percurso. Seu plano era ser vice de Covas “, argumenta. Ele acha que Russomanno precisa do apoio do mandatário para chegar ao segundo turno, uma barreira que não conseguiu superar até hoje. “Se o adversário for Covas, dificilmente leva. O prefeito já procurou um espaço de moderação. O mais rejeitdo é Bolsonaro.” Russomanno quer o apoio, mas precisa driblar a rejeição de 46% de Bolsonaro na cidade, apontada pelo Datafolha. O atual prefeito tem um problema semelhante — Doria é rejeitado por 39%. “Há uma ideia mítica de que a campanha paulistana é o pontapé da campanha presidencial. Mas isso não aconteceu em nenhum momento da história. Dois anos no Brasil é uma eternidade”, diz Figueiredo. Além de uma campanha sem comícios, em meio à pandemia, essas eleições não têm um presidente tentando fortalecer sua base, com vistas às próximas eleições presidenciais. “É uma eleição sem precedentes”, diz Teixeira.

 


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