Foi-se o tempo em que comprar um carro direto da concessionária era sinônimo de tranquilidade garantida. O recall de mais de 50 mil veículos fabricados em janeiro de 2002 – anunciado na semana passada em conjunto pela General Motors, Volks, Ford e Fiat do Brasil – demonstra que aquela história de que a melhor marca é o “zero-quilômetro” já não é bem assim. Uma a uma, as quatro maiores montadoras instaladas no País vieram a público informar que os veículos fabricados por elas no início deste ano e recém-chegados às lojas e às mãos dos consumidores podem apresentar problema no sistema de freio a disco. Inclusive veículos exportados para o México, entre os quais alguns modelos da Volkswagen, terão as peças defeituosas trocadas, assim que desembarcarem por lá.

Não se trata de nenhuma coincidência o fato de o recall ter sido anunciado pelas quatro montadoras de uma vez. O sistema de freios usado por todas elas é produzido por um único fabricante, a Continental do Brasil Produtos Automotivos, subsidiária da gigante multinacional alemã Continental Teves. Com um faturamento anual superior a US$ 10 bilhões em todo o mundo, a Continental Teves é um exemplo acabado da tendência que domina a indústria automobilística internacional: um número cada vez menor de fábricas fornece autopeças para as montadoras, as quais, por sua vez, dependem cada vez mais da terceirização da produção. Ou seja, além do motor e da carcaça, poucas peças são de fato produzidas pela fábrica que dá nome ao veículo.

A Continental, por exemplo, produz pneus e freios, sendo líder mundial no segmento de freios a disco. É líder também no Brasil e fornecedora de outras marcas, além das já citadas, como a Chrysler do Brasil, que, de acordo com a Continental, não chegou a utilizar o tipo de peça que pode apresentar problema. No caso, o defeito – uma infiltração de hidrogênio no pistão do freio a disco – reduz a eficiência em uma freada em pelo menos 30%. Na prática, uma freada que levaria 100 metros poderá levar 130 metros, diferença suficiente para provocar um acidente. “Avisamos as montadoras assim que soubemos do problema, na sexta-feira 8. Mas a probabilidade de redução da eficiência do freio é muito pequena e somente após uso severo”, disse Paulo Segalla, diretor comercial da divisão de freios da Continental. Segalla se recusou a informar a origem do problema. Seguindo a tendência do setor, a Continental também reduziu seu quadro de pessoal – empregava cerca de 1,5 mil funcionários em 1997 e hoje emprega cerca de 800. O motivo, diz o executivo, seria a queda na venda de automóveis, além do avanço da automação. A Continental afirmou ainda que arcará com os custos da troca de peças, que será feita pelas concessionárias das marcas. Os modelos que precisarão ser checados são o Celta, Corsa, Astra, Vectra e Zafira, da GM; Gol, Parati, Saveiro, Santana e Kombi, da Volks; Ka, Fiesta e Courier, da Ford; Fiorino, Dobló, Palio, Strada e Siena, da Fiat.

“É inequívoco que o consumidor da indústria automobilística está em uma situação vulnerável”, disse Ricardo Morishita, diretor de programas especiais do Procon de São Paulo. Assim que o recall foi anunciado, o Procon abriu um inquérito administrativo que poderá resultar em uma multa de até R$ 3,2 milhões para cada uma das montadoras e também para a própria Continental. “A responsabilidade dos fabricantes não se restringe a quem comprou um veículo, inclusive porque nesse caso um transeunte corre o risco de virar vítima”, afirmou Morishita. O processo, sigiloso, se restringe à esfera administrativa e poderá ser contestado na Justiça pelos fabricantes, se forem condenados no Procon. O Ministério da Justiça também anunciou que irá entrar no caso, investigando a responsabilidade da falha. De acordo com o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão do ministério que acompanhará o problema, são pelo menos 23,8 mil veículos da General Motors que terão suas peças trocadas, 23,7 mil da Volks, 6,1 mil da Ford, além dos da Fiat, que até a quinta-feira 14 não havia informado o número exato de automóveis com peças defeituosas.

Recorde – O número de recalls na indústria automobilística cresceu muito nos últimos anos. Em 2000, o País registrou recorde no número de anúncios convocando os proprietários de carros a comparecer à concessionária para trocar itens defeituosos. Foram 32 recalls registrados desde 1999 – 15 somente no ano passado, envolvendo milhares de veículos, de acordo com levantamento do Procon. No maior deles, o do Corsa, foram trocadas peças de mais de 600 mil veículos. No Exterior, os casos de recalls também são cada vez mais frequentes – a Ford anunciou um de 700 mil carros na quarta-feira 13, válido para veículos vendidos nos mercados americano, canadense e mexicano. Nos EUA, a Chrysler foi intimada na semana passada a fazer um recall de 585 mil veículos.

Terceirização – O número crescente de recalls de grandes proporções tem uma explicação, dizem os especialistas. A tal terceirização, aliada a novas práticas operacionais das fábricas, fez com que surgissem brechas para falhas, como a anunciada pelas quatro marcas. “As montadoras deixaram de fazer a verificação das peças por meio de amostragem, como era prática pelo menos até o início dos anos 90. De uns cinco anos para cá, elas passaram a dar certificados de qualidade para as empresas e checar apenas uma peça”, diz o engenheiro de produção Mauro Zilbovicius, professor da Poli/USP. O objetivo, diz ele, é reduzir custos e o tempo de produção. Por conta disso, as falhas acabam aparecendo somente quando o produto já está com o consumidor final. E muitas vezes tarde demais.