A má notícia que ameaça turvar a aurora da estrela vermelha vem de um dossiê-bomba produzido por uma CPI na Câmara Municipal da pequena cidade de Iturama, no pontal do triângulo mineiro, na divisa com Goiás. Um denso relatório revela que mais de R$ 4 milhões da prefeitura foram desviados através de uma intricada
rede de negócios ilegais envolvendo fornecedores do município nos últimos seis meses de 1996, final da gestão
do então prefeito e atual senador
Aelton José de Freitas (PL-MG).

O dossiê é minucioso e está recheado com mais de uma centena de cópias de cheques da prefeitura – que irrigavam o esquema de desvio –, notas
fiscais falsas, pelo menos 32 empresas fantasmas e vários laranjas.
No centro deste calhamaço explosivo, com mais de cinco mil páginas
e 23 robustos volumes, além do senador Aelton José de Freitas,
que herdou a vaga do vice do presidente Lula, José Alencar, está
seu correligionário político, o deputado federal e atual ministro
dos Transportes, Anderson Adauto (PL-MG), alçado ao cargo por indicação do próprio José Alencar com o aval do PL. Anderson Adauto
era deputado estadual na época do escândalo. “As investigações levadas a efeito comprovaram enorme volume de práticas criminosas, desvio
de dinheiro público em benefício próprio e de terceiros, falsificações grosseiras, uso de documentos particulares e públicos falsificados, defraudações com malversação do dinheiro público, bem como
formação de quadrilha”, acusa o relatório final da CPI de Iturama.

As pontas do escândalo começaram a ser puxadas com a abertura de uma CPI na Câmara Municipal em março de 1997, concluída seis meses depois. Os vereadores descobriram e comprovaram na administração Aelton José de Freitas várias operações utilizando notas fiscais frias; recibos de depósitos bancários falsificados; licitações irregulares ou fraudulentas; obras ou serviços não realizados recorrendo a laranjas e a uma rede de empresas fantasmas e adulteração de notas fiscais de firmas existentes. Aelton assinou um punhado de cheques da prefeitura para empresas fictícias, entre elas a Pentágono Química e Farmacêutica, com inscrição municipal desativada em janeiro de 1993, e a JAC Caxias Comercial, que teve suas atividades canceladas em setembro de 1991. De outro lado, utilizou notas fiscais falsas para pagar à empresa Auto Peças JMC um total de R$ 27,3 mil. A empresa não existe e a inscrição, cancelada em 1979, pertencia a um açougue da cidade de Mirassol (SP).

Outra empresa, a Paumar Comércio e Representação, de Araraquara
(SP), nunca teve negócios com a Prefeitura de Iturama. Um dos sócios, Sérgio Camolesi, depôs na CPI e contou que os documentos da empresa foram roubados em Barretos (SP) em 1996, e nunca viu a cor dos
R$ 13,7 mil do cheque emitido pela prefeitura. Mas não foi só isso. Aelton não teve constrangimento em assinar, endossar e sacar para si dois cheques da prefeitura na boca do caixa. O primeiro, do dia 17 de julho
de 1996, no valor de R$ 5.459,58. O cheque, de número 070099, da conta 005178-9 do Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge), é da administração do município e nominal à própria prefeitura. Versátil, Freitas retira o dinheiro no mesmo dia, depois do endosso dele e da tesoureira da prefeitura, Divina Aparecida Queiroz Malta, no verso do cheque. Cinco dias depois, o ex-prefeito repete o mesmo esquema, dessa vez na conta corrente 4058-4 da agência 0853-2 do Banco do Brasil, na avenida Campina Verde, no centro de Iturama, onde a prefeitura mantinha uma segunda conta bancária. Em 22 de julho ele assina, endossa e saca
um cheque mais polpudo, de R$ 22.508,50, com o número 380083.

Irregularidades – As contas da prefeitura nos bancos de Iturama são uma passarela de irregularidades para irrigar outras negociatas suspeitas. Foi da conta do Banco do Brasil que saíram gordos cheques para empreiteiras e empresas de consultoria fictícias ou irregulares em Minas, Rio de Janeiro e interior de São Paulo. A empresa Líder Engenharia Empreendimento Ltda., por exemplo, abocanhou quatro cheques, um de R$ 11,5 mil e outro de R$ 22,5 mil do Banco do Brasil e dois – um de R$ 9,3 mil e o segundo de mais R$ 11, 5 mil – do Bemge. Segundo o relatório da
CPI, a Líder não possuía alvará de funcionamento e seu endereço era o
mesmo do escritório político do ministro Anderson Adauto em Uberaba, cidade a 280 quilômetros de Iturama. Já a Coem, Construtora e Estruturas Metálicas Ltda. embolsou R$ 54,9 mil da prefeitura.

De acordo com o documento da Secretaria Municipal de Fazenda
de Uberaba, assinado pelo técnico Ney Corrêa Filho em 18 de julho
de 1997, as duas estavam irregulares, pois não possuíam alvará de licença. A nota fiscal apresentada pela Coem não tinha a liberação
da Secretaria de Fazenda de Uberaba. O mais grave: as duas têm
como sócio o empresário Vicente Marino Junior e o endereço
das empresas, rua São Benedito, número 52, é o mesmo onde
funcionava o escritório político de Anderson Adauto, em Uberaba.

A CPI denunciou o comprometimento do ministro com a máfia
de Iturama. “Anderson Adauto Pereira cedeu seu escritório em
Uberaba para a formação de um grupo de empresas destinadas
a participar de fatos inidôneos praticados pelos acusados”, diz
o relatório assinado pelo presidente e pelo relator da CPI, os
então vereadores Jurjus Andrauss (PT) e Edson Silva de Menezes
(PFL). Outra empreiteira que, segundo a CPI, também funcionava
no prédio de Anderson Adauto, era a Construtora Triangulina de
Obras (CTO), que beliscou generosos contratos públicos na
gestão de Aelton, apesar de estar irregular como as demais.

De pai para filho – No mesmo endereço, um pequeno prédio no centro
de Uberaba, na sala 210, funcionava também a CPA, Construtora Planejamento
e Assessoria Ltda. A
CPA mordeu cheques
da prefeitura na gestão
de Aelton. A empresa,
após pequenos serviços,
fez um contrato de causar inveja. Em julho de 1996,
o prefeito contratou
a CPA, sem licitação, para uma consultoria intrigante para quem
está em final de mandato: “Elaboração de análise e diagnóstico
da atual estrutura administrativa e funcional da prefeitura municipal
de Iturama”. Por esta consultoria a CPA recebeu R$ 260 mil.

O cronograma de pagamento foi de pai para filho. Tudo foi
honrado nos últimos 12 dias da gestão de Aelton José de Freitas.
Foram R$ 50 mil no dia 20 de dezembro de 1996, outros R$ 80 mil
no dia 24 de dezembro e, para comemorar o Ano-Novo, dois
pagamentos no dia 30 de dezembro, um de R$ 95 mil e outro
de R$ 35 mil. A CPI concluiu que não houve prestação dos
serviços contratados por nenhuma das empresas de Uberaba.

Aqui começam a aparecer as transações feitas no terceiro banco com
o qual a Prefeitura mais operava, a agência 0936 da Caixa Econômica Federal, na avenida Rio Grande, no centro de Iturama. Foram dezenas
de cheques para o esquema, mas a CEF diz que os depósitos para
a CPA e várias outras empresas foram fraudulentos. “Em nossos movimentos diários não existe nenhum documento ou lançamento referente aos recibos apresentados ou números de contas citados”, atesta o documento assinado pelo gerente regional Saulo Vieira Guimarães, que ainda acrescenta mais ilegalidades: “O tipo de impressão dos recibos é parecido com o padrão de autenticação usado pela
CEF em toda a sua rede.” A Caixa disse ainda que as contas para
as quais iriam os depósitos não existiam nas agências citadas.

Superlaranja – Um dos três sócios da CPA, Clodoaldo Soares, como pessoa física, também é beneficiário de 19 cheques pagos pela prefeitura, num total de R$ 105 mil. Clodoaldo é um advogado contratado irregularmente, segundo a CPI, para assessorar a prefeitura na cobrança de ICMS sobre produção de energia elétrica. O que mais chama a atenção é que o destino dos pagamentos é um superlaranja, de nome Laert Carlos Mattos Martins. Ele é o grande beneficiário dos cheques emitidos para empresas fantasmas e contas inexistentes. Ao todo
foram 28, que totalizaram R$ 770 mil, sacados na boca do caixa
pelo próprio Laert. Os cheques não eram cruzados e tinham carimbos
e endossos falsos e a assinatura do próprio Laert no verso.

Laert seria procurador de 32 empresas fantasmas e nunca foi localizado pela CPI. O CPF dele atualmente está cancelado na Receita Federal. Os altos valores sacados por ele necessitavam de previsão de retirada no banco, o que não acontecia. Como as contas para depósito são inexistentes, o esquema demandava uma frenética operação de corrida ao banco: o prefeito assinava um pacote de cheques nominais para empresas inexistentes, Laert falsificava os endossos e ele próprio ia ao caixa sacar o dinheiro. Todos os lotes, sem exceção, têm emissão e saque em um mesmo dia. No dia 17 de dezembro de 1996, Laert sacou nove cheques para empresas distintas, que somaram R$ 157,3 mil. O dia 20 de novembro de 1996 também foi uma farra. Foram outros nove cheques, totalizando R$ 143,6 mil, todos para empresas inexistentes. A parte final da operação implicava a confecção de recibos de depósitos falsos e notas fiscais frias ou calçadas para legalizar a operação
e fechar documentalmente as despesas efetuadas pela prefeitura.

Em setembro de 1997, o chamado dossiê-Iturama foi enviado ao Ministério Público, ao Tribunal de Justiça e à Assembléia Estadual
de Minas, que era presidida por Anderson Adauto. O assunto caiu
numa espécie de buraco negro e só recentemente o relatório da
CPI levou Aelton José de Freitas à condição de réu no processo 034401002671-6, que se arrasta no fórum de Iturama. A comarca
está sem juiz titular desde o final do ano passado. Por causa da
lentidão, um correligionário dos principais envolvidos resolveu denunciar
o escândalo. O presidente do PL de Iturama, Isaac Albino da Silva,
que tentou vetar a filiação de Adauto no partido, enviou cópias
do relatório da CPI à Corregedoria do Senado e ao então senador
José Alencar tentando impugnar a diplomação de Aelton.

Isaac conta que até hoje não recebeu resposta. “A posse deu ao
senador todas as ferramentas e atribuições inerentes ao cargo, para
mais uma vez procrastinar a penalização de sua barbárie, num dos
mais gritantes crimes de peculato já conhecidos entre as administrações municipais”, protesta o presidente do PL de Iturama. Quando se
defendeu na CPI, através de um advogado, o ex-prefeito confirmou
toda a bandalheira, mas tentou colocar a culpa nos bagrinhos.