São quatro milhões de visitantes. Uma multidão capaz de colocar no chinelo os 900 mil turistas que lotaram Salvador no domingo de Carnaval. Mas lá, folião não entra. Meca, a capital sagrada dos muçulmanos, se transformará no maior formigueiro do planeta a partir do dia 20, época destinada ao haji, a peregrinação que todo seguidor
do Islã deve cumprir pelo menos
uma vez na vida. No calendário lunar praticado pelos árabes, o haji é realizado entre os dias 8 e 12 do último mês do ano, o que torna a data móvel na contagem ocidental. Com o objetivo de beijar a Pedra Negra, entregue pelo Anjo Gabriel a Abraão há quatro mil anos, e visitar Caaba,
o primeiro templo do mundo dedicado à adoração de um único deus, o número de visitantes não pára de crescer. Até Maomé, estabelecido em Medina desde a hégira – fuga de Meca em 622, que marca o ano zero do calendário muçulmano –, cumpriu o haji pouco antes de morrer. Ainda hoje, os rituais são os mesmos realizados pelo profeta.

Não é fácil a vida de peregrino.
É preciso enfrentar temperaturas superiores a 45 graus durante o dia e índices negativos no decorrer da madrugada. A paisagem desértica e o fervor religioso fazem com que muitos fiéis embarquem com o dinheiro contado para a passagem, dispostos a dormir ao relento ou nas tendas oficiais. Até para se vestir é preciso atenção: as mulheres precisam ficar apenas com mãos e rosto à mostra e os homens devem usar um traje especial, formado por uma toalha amarrada à cintura e outra sobre os ombros, que elimina qualquer distinção de classe e cultura. Mas nada assusta os 200 brasileiros que devem chegar ao aeroporto de Jidá, a 70 quilômetros de Meca, nesta semana. “Antigamente era pior. Hoje, existe água potável de graça para todo mundo, atendimento médico de qualidade, transporte moderno e um número de sanitários públicos suficiente para não causar filas”, conta a corretora de imóveis paulista Lucy Nascimento, 42 anos, que se diz realizada após retornar de Meca com o marido em 2000. Desde que abraçou a doutrina muçulmana e o nome Asiya Isrá, aos 28 anos, Lucy sonhava cumprir o haji, obrigatório a todo fiel com condições físicas e financeiras. A oportunidade veio com um convite da Arábia Saudita.

Todo ano, o governo árabe emite passagens para serem distribuídas
a muçulmanos do mundo inteiro desprovidos de posses, mas espiritualmente preparados.
No Brasil, uma das instituições encarregadas de selecionar os felizardos é a Assembléia Mundial
da Juventude Islâmica (Wamy), presidida na América Latina pelo sheik Ali Abdune, a quem cabe a escolha de dez peregrinos. “São os dias mais importantes na vida do muçulmano. No período que antecede o haji, o peregrino não pode se perfumar, cortar cabelos e unhas, proferir palavrão, nem manter relações sexuais. Encontra-se em um estado a que chamamos ihraam, necessário para manter a mente limpa”, diz ele. Este ano, um dos enviados pela Wamy será Mohamad Adel Chawo, 45 anos. Nascido no Líbano e naturalizado brasileiro aos 18, Mohamad afirma ter chegado a hora de empreender a grande viagem. Deixará a esposa e os dois filhos em São Paulo para rezar na terra do profeta. “Nunca se sabe se haverá nova oportunidade”, justifica. “Alguns preferem pecar bastante antes de obter o perdão e adiam o haji para mais perto da prestação de contas”.

A redenção é concedida por Alá ao pé do monte Arafat, onde a multidão se une para rezar. O pedido de perdão dura uma tarde inteira. Além dele, outros rituais preenchem quatro dias. Nos moldes propostos por Maomé, é preciso dar sete voltas ao redor de Caaba (três delas correndo), cruzar sete vezes a distância entre os montes Safa e Marwa (como fez Hagar, mulher de Abraão, à procura de água), beber do poço sagrado de Zam-zam (surgido para saciar a sede de Ismael, filho de Abraão) e, por três dias, atirar sete pedras em um buraco, o que representa o apedrejamento do diabo. Cumprida todas as etapas e a grande festa de Eid Al Adha, os fiéis estão prontos para voltar para casa. Não sem antes sacrificar um cordeiro ou pagar US$ 50 para que alguém o faça. Já imaginou quatro milhões de animais executados no meio do deserto? Só Maomé explica.


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