A governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho (PSB), virou o ano trocando acusações com sua antecessora, Benedita da Silva (PT), sobre a responsabilidade pelo bloqueio de R$ 86 milhões em impostos federais destinados ao Estado feito pela União. Com esse dinheiro, Rosinha acredita que conseguirá pagar parte do 13º salário dos 480 mil funcionários do governo do Rio, até hoje em atraso. Porém, bastaria que a governadora desse um simples telefonema ao procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, para descobrir um dos motivos que vêm arruinando os cofres do Estado. De quebra, a governadora ainda teria uma fonte alternativa para tapar o buraco. Em novembro passado, Brindeiro recebeu das mãos de seu equivalente na Suíça, Brent Holtkmam, um precioso dossiê traduzido para o português pela embaixada brasileira em Berna que mostra o surpreendente resultado de uma escandalosa estrutura de corrupção montada dentro da Secretaria Estadual de Fazenda do Rio com a conivência de auditores da Receita Federal lotados no Estado. De acordo com os documentos entregues a Brindeiro, aos quais ISTOÉ teve acesso, quatro funcionários do alto escalão do Fisco fluminense mandaram US$ 30,2 milhões para a Suíça. Outros US$ 3,2 milhões foram enviados por quatro auditores da Receita Federal lotados no Rio de Janeiro. Os US$ 33,4 milhões remetidos pela turma de fiscais, correspondentes a R$ 110,4 milhões, dariam para saldar pelo menos 20% da dívida do governo do Rio com seus servidores. O dinheiro saiu do Brasil por intermédio do Discount Bank and Trust Company, um banco suíço com sede em Genebra. No Brasil, tem apenas um escritório, localizado na avenida Nilo Peçanha, no centro do Rio de Janeiro. No mesmo local, funciona a empresa Coplac Consultoria e Promoções, de propriedade do representante do banco no Brasil, Herry Rosemberg. Nos registros oficiais, tanto o escritório como a Coplac apresentam transações financeiras modestas, levando à suspeita de que o dinheiro chegava à Suíça por intermédio de doleiros ou depósitos feitos diretamente no Exterior.

Cargo-chave – Entre os envolvidos está Rodrigo Silveirinha Corrêa, um antigo colaborador do ex-governador Anthony Garotinho e assessor econômico da campanha de Rosinha. Na segunda-feira 6, chegou a ser empossado na presidência da Companhia de Desenvolvimento Industrial do Rio de Janeiro (Codin), mas foi afastado do cargo apenas quatro dias depois, enquanto ISTOÉ finalizava a apuração. Encarregado pela governadora de estudar a reestruturação da malha de arrecadação do Estado, Silveirinha remeteu ilegalmente US$ 8,9 milhões. A maior parte do dinheiro foi parar em uma conta suíça enquanto ele ocupava o cargo-chave de subsecretário de administração tributária do governo Garotinho, entre 1999 e 2000. Um ex-subordinado de Silveirinha, o fiscal de rendas Carlos Eduardo Pereira Ramos, enviou uma bolada ainda maior: US$ 18 milhões. As demais remessas ilícitas da equipe do Fisco estadual foram feitas pelo ex-chefe de gabinete da Secretaria Estadual de Fazenda, Lúcio Manoel dos Santos Picanço (US$ 1,2 milhão), e pelo fiscal Rômulo Gonçalves (US$ 2,1 milhões). O esquema envolve também os auditores da Receita Federal Sérgio Jacome de Lucena (US$ 320 mil), Axel Ripoll Hamer (US$ 680 mil), Hélio Lucena Ramos da Silva (US$ 450 mil) e Amauri Franklin Nogueira Filho (US$ 1,8 milhão). Todos trabalham no setor fazendário do Rio e já estão sob investigação da Receita Federal e do Banco Central. O caso está sob o comando do Ministério Público e da Polícia Federal. Em 11 de dezembro último, o delegado responsável pelas investigações, Adalton de Almeida Martins, abriu o inquérito 20/2002 contra os oito funcionários para apurar os crimes de lavagem, remessa de dinheiro sem autorização do Banco Central, manutenção de depósito ilegal no Exterior, corrupção passiva e extorsão. Se tudo se comprovar, além da perda do cargo, a turma poderá pegar até dez anos de prisão. “Todos acham que podem mandar recursos para a Suíça sem explicar a sua origem. Mas os acordos internacionais recentes, dos quais somos signatários, exigem que o depositante mostre de onde vem o dinheiro”, explica uma alta fonte da procuradoria suíça. De acordo com
a mesma fonte, o gerente do banco onde os oito fiscais tinham suas contas, cujo nome está sendo mantido em sigilo, exigiu que justificassem de onde vieram tantos milhões, mas eles se limitaram a responder que
os dólares eram fruto de consultorias e auditorias prestadas a empresas privadas. Como não apresentaram comprovantes, o banco acionou
o MP da Suíça, já escaldado pela investigação de outros escândalos brasileiros milionários. Uma fonte ligada a um dos envolvidos informa
S que a instituição mantida em sigilo é o Union Bancaire Privée.

Extorsão – ISTOÉ, que apura as atividades dos fiscais há 40 dias, levantou documentos em cartórios, ouviu o depoimento de empresários locais e funcionários do alto escalão do governo e chegou a uma conclusão estarrecedora: tudo aponta para a existência de um grupo de dirigentes e funcionários públicos especializado em extorquir empresas de grande porte devedoras do Fisco. Os auditores estaduais, que trocavam informações com os quatro colegas federais, montaram uma banca dedicada a vender anistia de multas e benefícios tributários. Os documentos mostram que enquanto os fiscais federais tentam simular uma vida modesta, os estaduais não têm a menor preocupação em disfarçar a própria riqueza, esbanjando luxo. O campeão dos milhões na Suíça Carlos Eduardo Pereira Ramos, por exemplo, ganha R$ 8,2 mil depois de 12 anos como fiscal de rendas do Estado. No entanto, isso não o impede de ser proprietário de três apartamentos em condomínios de luxo na Barra da Tijuca, dois terrenos em Jacarepaguá, um em Natal e uma polpuda caderneta de poupança de R$ 850 mil na conta 501593/6 na agência 0265 do Banco do Brasil no Rio, segundo narra o contrato de partilha de bens firmado entre Ramos e a ex-mulher Valéria Gonçalves dos Santos, registrado no 24º Cartório de Notas da cidade. No mesmo documento, o fiscal de rendas concorda em deixar para a ex-mulher R$ 110 mil, além de um carro e parte dos bens. Silveirinha, Gonçalves e Picanço também mostram uma vida incompatível com seus salários de funcionários públicos de carreira. Silveirinha mora em uma espaçosa mansão avaliada em
R$ 1 milhão em um seleto condomínio no sofisticado bairro do Recreio dos Bandeirantes. Os outros dois colegas têm apartamentos no Rio e casas em condomínios de classe média alta em Niterói. No caso dos auditores do fisco federal, com exceção de Hélio Lucena Ramos da Silva, que tem uma casa próxima à de Picanço em Niterói e um apartamento no Rio, os outros três moram em apartamentos simples na zona norte da cidade.

Esquema – Segundo os relatos de empresários que se dizem vítimas
da extorsão do grupo, o esquema funcionaria em dois setores: na Inspetoria de Contribuintes de Grande Porte e no Programa de Reestruturação de Empresas Fluminenses, ambos criados por Garotinho com o propósito de aumentar a arrecadação e estimular o desenvolvimento do Estado. À inspetoria, criada em janeiro de 1999, cabia a fiscalização das 400 maiores empresas do Rio, responsáveis por 75% da arrecadação de ICMS do Estado. Ou seja, uma bolada mensal na casa dos R$ 600 milhões. No topo da pirâmide hierárquica estava Silveirinha, que, como subsecretário de Administração Tributária, comandava toda a estrutura de fiscalização. Tido como técnico competente, ele foi o mais jovem subsecretário que o Rio já teve. Assumiu o cargo com apenas 36 anos e, em 2000, chegou a ganhar um prêmio concedido por uma associação de empresas de informática local. Um dos elaboradores do programa de governo de Rosinha na área de finanças, Silveirinha manteria seu trânsito entre os empresários do Rio
à frente da Codin. A atual governadora quer transformar a empresa em uma grande agência de fomento. No antigo posto de subsecretário,
o braço direito de Silveirinha na inspetoria era Carlos Eduardo Ramos,
que chefiava os funcionários responsáveis pela fiscalização dos grandes contribuintes do Estado. Ramos, por sua vez, era assessorado por
Rômulo Gonçalves, um dos integrantes da inspetoria. Talvez pela precocidade (os três foram contratados como fiscais no concurso público de 1990), ganharam dos empresários do Rio o apelido de “menudos da Fazenda”, numa alusão ao extinto grupo de cantores adolescentes de Porto Rico que fez sucesso na década de 80. Picanço, filho de um ex-prefeito de Niterói e candidato derrotado a uma vaga para deputado federal pelo PDT do Rio, ocupou, entre outros cargos estratégicos na estrutura da Secretaria Estadual de Fazenda, o de secretário-executivo do Conselho Superior de Fiscalização Tributária. Deixou o cargo no ano passado para disputar a eleição em que obteve 25 mil votos. Apesar
da polpuda poupança de US$ 1,2 milhão no Exterior, o candidato derrotado declarou ter gasto modestos R$ 40 mil na sua campanha.
A maior parte foi doada pelo estaleiro Promar Reparos Navais Ltda.

Para a Polícia Federal, o esquema deve envolver outras pessoa do alto escalão. Dificilmente apenas os quatro seriam capazes de controlar uma rede de propinas tão lucrativa. A informação é confirmada em parte pelo ex-secretário de Fazenda Carlos Antônio Sasse, sogro de Picanço e responsável pela criação da inspetoria. Segundo Sasse, que ficou apenas nove meses no cargo, para evitar fraudes, todas as operações de fiscalização de grande porte eram feitas por no mínimo quatro funcionários escolhidos
aleatoriamente. Os critérios das autuações eram submetidos à avaliação de uma equipe de auditores ligada à cúpula da secretaria. Ele nega,
no entanto, que tenha ocorrido alguma ilegalidade durante sua administração. “Criamos uma estrutura em que era impossível este tipo
de coisa acontecer. Se houve corrupção, ela ocorreu antes ou depois
da minha gestão”, defende-se o ex-secretário. Localizado em seu apartamento no bairro do Flamengo, Lúcio Picanço recebeu com estranheza a notícia da existência de sua conta na Suíça. Ele diz acreditar que seu nome tenha sido usado por outras pessoas para abrir conta em paraísos fiscais. “Sou de uma família tradicional de Niterói, mas jamais teria condição de levantar uma grande quantidade de dinheiro como essa.” Ele diz que seus bens são fruto de herança da família e informa que já contratou o advogado Arthur Lavigne para defendê-lo, apesar de não ter sido comunicado oficialmente pela PF do fato.
Confirma que conhecia os outros três auditores da Receita estadual,
mas despachava apenas com Silverinha e exclusivamente assuntos burocráticos. Procurado em sua casa no Recreio dos Bandeirantes,
o ex-secretário adjunto não foi localizado. Já Carlos Eduardo Pereira Ramos negou-se a comentar o caso. “Não sou da Receita e não
tenho nada a declarar”, disse ao ser procurado por ISTOÉ em 18
de dezembro. Desde então, está trancado em seu apartamento na
Barra da Tijuca, onde se recusa a receber até mesmo oficiais de
Justiça. Por intermédio de amigos, Hélio Lucena informa que
aguarda ser comunicado oficialmente sobre as contas na Suíça.

Ponto de encontro – Silveirinha também aparece como integrante do conselho que comandava um programa especial de incentivo ao setor produtivo do Estado. O programa consistia na concessão de financiamentos a empresas inadimplentes interessadas em quitar seus débitos com o Fisco local. “O problema é que a liberação desses empréstimos tinha que ser submetida à aprovação da cúpula da secretaria, que pedia
dinheiro em troca da concessão dos benefícios”, diz um empresário
falido que aguarda os desdobramentos das investigações para se pronunciar oficialmente. Segundo o mesmo empresário, os quatro auditores do Fisco federal costumavam despachar no oitavo andar
de um prédio na rua Graça Aranha, no centro do Rio, a poucos metros
da delegacia da Receita. Arrumada por Axel Ripoll, a sala era o ponto
de encontro onde os auditores estaduais e federais acertavam negócios. A ligação entre os dois grupos é documentada. Amauri Franklin Nogueira
e Carlos Eduardo Ramos têm uma sociedade em dois terrenos em Jacarepaguá, segundo um documento obtido por ISTOÉ no cartório
do 1º Ofício de Notas do bairro. Uma fonte ligada a um dos fiscais federais envolvidos confirma o envio do dinheiro para fora do País.
Mas diz que o pé-de-meia no Exterior foi amealhado à custa de consultorias tributárias concedidas a contribuintes com pendências fiscais. O grupo tentou transferir o dinheiro da Suíça, mas não conseguiu. Os US$ 33,4 milhões estão bloqueados pela Justiça daquele país.
Apesar de ainda não terem sido chamados para depor na corregedoria
da Receita, dois dos quatro auditores federais pediram licença.

 

As revelações do Fisco suíço caíram como uma bomba nos bastidores empresarias e corredores das burocracias estadual e federal do
Rio. Encurralados, já apelam para ameaças. Por volta das 16h
de terça-feira 7, a sucursal de ISTOÉ em Brasília recebeu um
telefonema de uma pessoa que, se dizendo parente de um dos fiscais investigados, avisou que o repórter Amaury Ribeiro Jr., que fazia
o levantamento de bens no Rio, “estava com seus dias contados”.

OS MENUDOS DO FISCO

Rodrigo Silveirinha
Ex-secretário adjunto de Administração Tributária no governo Garotinho e assessor econômico da campanha de Rosinha.
Tem US$ 8,9 milhões.
Lúcio Manoel Picanço
Ex-assessor e genro do primeiro secretário de Fazenda
de Garotinho. Tem US$ 1,2 milhão.
Carlos Eduardo Pereira Ramos
Ex-chefe da Inspetoria de Contribuintes de Grande
Porte. Tem US$ 18 milhões
Rômulo Gonçalves
Fiscal de rendas da inspetoria. Tem US$ 2,1 milhões
Amauri Franklin Nogueira Filho
Fiscal da Receita Federal. Tem US$ 1,8 milhão
Hélio Lucena Ramos da Silva
Fiscal da Receita Federal. Tem US$ 450 mil
Sérgio Jacome de Lucena
Fiscal da Receita Federal. Tem US$ 320 mil
Axel Ripoll Hamer
Fiscal da Receita Federal. Tem US$ 680 mil
Total enviado para a Suíça: US$ 33,45 milhões

O QUE SÃO US$ 33,45mi ( ou R$ 110,4 mi )

• 552.250 salários mínimos
• 7,2 prêmios da Mega Sena acumulada
• 7.363 carros Gol Special 1.0
• 248.873 mil salários de professores
• 2/3 do dinheiro desviado pelo juiz Nicolau
da obra do TRT em São Paulo
• 13.806 salários de um ministro
• 12 coberturas na av. Vieira Souto, na praia de Ipanema
• 52 milhões de litros de gasolina, que abasteceriam
dois mil carros por dez anos
• 1/4 do orçamento do Fundo Nacional de Segurança Pública em 2003