Uma espécie de território independente está sendo criado em silêncio, em uma área de fronteira entre o Brasil e o Paraguai. É o paraíso tropical do reverendo Sun Myung Moon, formado por uma sucessão de santuários naturais, por onde cruzam os rios Nabileque, Miranda, Paraguai, Prata e Salobra. No total, as propriedades somam 833 mil hectares, o que equivale a mais de três Luxemburgos, o grão-ducado europeu. Nelas caberiam todo o Distrito Federal, além das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Se fossem destinadas à reforma agrária, daria para assentar 41.650 famílias. Embora ainda não sejam contíguas, as terras vêm sendo adquiridas tão perto umas das outras que é impossível não imaginar que estão para unir-se.

Encarregado de preservar a integridade territorial do País, o Exército já entrou em alerta. Responsável pelos assuntos de segurança nacional, o general Alberto Cardoso colocou em campo os homens da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). A Polícia Federal, por sua vez, começou a rastrear as movimentações financeiras do misterioso empreendimento.

Jardim do Éden – O cerco começou depois do anúncio de Moon, em Nova York, de que pretende criar, em regiões conflagradas em qualquer ponto do mundo, zonas de paz a serem administradas pelas Nações Unidas. Para compensar os países que perderem área por causa da iniciativa, ele prometeu entregar terras compradas nos países do Mercosul. Parece delírio, mas a ambição desmedida é coerente com a trajetória do reverendo Moon. Fundador e líder de uma organização econômico-religiosa, ele tem raízes espalhadas por 185 países. De acordo com seus seguidores, o vínculo com esta parte do mundo começou em 1964. Fazia um sobrevôo pela Cordilheira dos Andes quando sentiu uma inspiração divina em construir algo na região. Trinta anos depois, durante visita ao Mato Grosso do Sul, vislumbrou no encontro dos rios Miranda e Prata uma alusão à confluência entre o Tigre e o Eufrates (região da antiga Mesopotâmia, atual Iraque), onde Deus teria criado o Jardim do Éden. Empenhado em erguer uma réplica do paraíso, Moon comprou no ano seguinte a Fazenda Nova Esperança, que abriga a união das águas do Miranda com o Prata.

De lá para cá, o líder da Igreja da Unificação não parou mais. Em seis anos, comprou outras 55 fazendas, num total de 83 mil hectares de terras próximas à fronteira. Para ter apoio nas cidades, adquire hotéis, imóveis residenciais e até postos de gasolina. Do outro lado da divisa, no Paraguai, sua organização já conta com mais de 750 mil hectares de terra. No Departamento de Alto Paraguay, a cidade de Puerto Casado entrou quase toda num “pacote” de 260 mil hectares vendido a Moon. O negócio, fechado há mais de um ano, ameaça o futuro de cinco mil moradores. Entre as pessoas instadas a abandonar a área está a viúva Celina de Cabrera, 74 anos, há meio século vivendo na mesma casa. “Daqui não saio”, resiste Celina, rodeada pela família. Antes que o conflito se acirre, o prefeito, Pedro Martinez, encaminhou ao congresso do Paraguai um pedido de desapropriação da área urbana. “Estamos muito preocupados, sem saber o que Moon pretende fazer aqui”, reclama Martinez.

Saída para o Atlântico – O líder religioso Kim Yoon Sang, representante máximo de Moon no Mercosul, conta que sua organização ainda está pesquisando o potencial das terras paraguaias, para definir sua destinação. “No Brasil, projeto tem 100 mil hectares”, diz o presidente Kim, como é chamado o líder religioso. “É para educação, produção de alimento e turismo contemplativo”, resume, em seu português peculiar.

Para atingir a meta dos 100 mil, o grupo precisa negociar mais 49 mil hectares. É que, dos 83 mil já adquiridos, cerca de 32 mil foram incluídos na reserva do Parque da Bodoquena, criada em setembro de 2000. O presidente Kim suspeita que a reserva foi demarcada só para abocanhar parte dos bens de Moon. Ele também se queixa dos fazendeiros, que aumentam os preços das terras vizinhas às suas, dificultando os planos de expansão. Tem certeza, porém, que sua organização vencerá qualquer obstáculo que encontrar pela frente. O detalhe adicional é que, num futuro próximo, o território de Moon terá acesso, por via fluvial, ao oceano Atlântico. Para isso, a organização comprou um terreno de 100 hectares na Baía de Montevidéu, no Uruguai. “Vamos construir nosso porto lá”, explica o presidente Kim.

A localização estratégica das propriedades de Moon e o mistério em torno de sua utilização mobilizaram o Exército brasileiro, embora o assunto seja tratado de forma reservada. “Causa preocupação à Força a aquisição, por parte de um grupo estrangeiro, de grandes extensões de terra em áreas de fronteira, o que gera um intercâmbio interno de avaliações entre o Exército e agências do governo brasileiro com competência para tratar do assunto”, declarou o comando do Exército, em nota a ISTOÉ. Na prática, o Exército acredita que a organização de Moon tem potencial para ameaçar a soberania nacional, pois um dos meios de se apropriar de territórios é formar núcleos populacionais, dando margem a posteriores disputas e reivindicações.

O fato de as propriedades brasileiras de Moon se confrontarem com as do Paraguai representa um agravante à ocupação no Mato Grosso do Sul. É o que esclareceu o comandante militar do Oeste, general-de-divisão Ernesto Conforto, durante audiência pública na Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul. “O próprio Centro-Oeste brasileiro foi assimilado pelo território colonial português através deste processo de entrada dos bandeirantes e das monções rumo a Cuiabá, com o posterior estabelecimento de portos fortificados ao longo dos rios Madeira, Guaporé e Paraguai”, lembra o general. Essas terras, que pertenciam à Espanha, acabaram reconhecidas como de Portugal pelo Tratado de Madri, em 1750. “A conquista americana do Texas, da Califórnia e do Novo México seguiu um processo parecido”, complementa o comandante militar
do Oeste.

Relatório secreto – Como se não bastassem as suspeitas do Exército, caiu nas mãos do general Alberto Cardoso, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, a cópia de um instigante discurso feito pelo reverendo Moon em Nova York, durante encontro da Federação Inter-Religiosa e Internacional pela Paz Mundial. Em sua fala, Moon propôs a criação de “zonas de paz” ou “zonas tampão” em áreas de conflito, cuja administração ficaria a cargo das Nações Unidas. Uma dessas “zonas tampão” seria a faixa desmilitarizada entre as duas Coréias. No discurso, Moon garantiu que os países que cedessem território para a formação dessas zonas seriam recompensados. “Estou comprando quase 1,2 milhão de hectares de terras férteis nos países sul-americanos do Mercosul, para ajudar a compensar os países pelas terras que possam perder em decorrência do estabelecimento de zonas controladas pela ONU”, disse Moon. “Já notifiquei os líderes da Coréia do Norte e do Sul de que estou preparado para transferir-lhes, para seu uso, porções daquelas áreas na América do Sul.”

Intrigado com o discurso, o general Cardoso despachou seu pessoal para o Mato Grosso do Sul. Depois de entrevistar 27 autoridades, esquadrinhar cartórios e propriedades de Moon, os homens da Abin apontaram uma incoerência que também inquieta os moradores do Estado. “Chama a atenção o fato de que, a despeito de haver propagandeado a execução de projetos agrícolas para o Estado, baseados especialmente na fruticultura e na pecuária, com respeito ao meio ambiente, a associa ção, depois da aquisição das terras, retira o gado existente e dispensa os peões, deixando as propriedades incultas”, registram no Relatório da viagem de observação das atividades da seita Moon. O minucioso relatório, de 19 páginas, sugere que o Conselho de Segurança Nacional acompanhe atentamente as ações do grupo de Moon, pois sua localização “visaria controlar via de acesso ao interior da América do Sul”. Questionados sobre a estratégia de ocupação territorial, os homens de Moon não discutem o tema abertamente. Apenas insistem que estão à frente de um projeto que visa o bem da humanidade. Afirmam ter 15 mil cabeças de gado nas fazendas, além de projetos experimentais, como uma criação de avestruzes. “Para nós, fronteiras não são importantes”, resume Kim. “Se o Brasil conhecer projeto e não gostar, pode mandar a gente de volta para Coréia.”

Representante legal da organização, o advogado Neudir Simão Ferabolli também não entra em detalhes. Seguidor de Moon há 23 anos, ex-presidente da organização no Brasil e autor do livro O fenômeno Moon, Ferabolli acredita que o preconceito e o desconhecimento são os principais entraves para a execução dos planos do reverendo no Brasil. “A vinda de estrangeiros para o projeto se dará de acordo com a legislação”, antecipa. Descendente de italianos, Ferabolli reclama para os orientais o mesmo tratamento igualitário que os brasileiros deram a seus antepassados.

 

Casamentos estratégicos – Na prática, se existem diferenças, elas começam pela forma peculiar de os adeptos de Moon ocuparem a terra e se organizarem na sociedade. Na Igreja da Unificação, até os casamentos são promovidos pelo reverendo Moon, na maioria das vezes entre pessoas de diferentes nacionalidades, que jamais se viram antes. É o caso da filipina Josette, que obteve visto de permanência no Brasil na esteira do casamento com o brasileiro Vilson Mendonça. Eles se conheceram em 12 de janeiro de 1989, no próprio dia das núpcias, marcadas e realizadas pelo reverendo Moon na Coréia. O casal vive agora na Fazenda Nova Esperança com as filhas, Mi Sook, oito anos, nascida em Araçatuba (SP), e Mi Yeong, seis anos, natural de Itu (SP). “Somos felizes”, dizem.

Josette é secretária do departamento que coordena a ação dos missionários de Moon em 33 cidades do Mato Grosso do Sul. Vilson trabalha na manutenção do complexo de mais de 11 mil metros quadrados construído na fazenda, que inclui um templo com dois mil assentos. No complexo, a Associação das Famílias para Unificação e Paz Mundial – o nome oficial da organização de Moon – recebia até o ano passado grupos de mais de mil visitantes para seminários de dez dias. Eram seguidores de diversas partes do mundo, que vinham reciclar seus conhecimentos e, ao mesmo tempo, apreciar as maravilhas do paraíso tropical da organização.

Construído sem nenhum tipo de licença ou parecer técnico, o complexo acabou embargado devido a problemas como a existência de esgoto a céu aberto, despejado nas águas límpidas do rio da Prata. “Os primeiros líderes que chegaram não entenderam a legislação pátria e foram construindo sem autorização, mas estamos regularizando tudo”, afirma o advogado Ferabolli. Levantamento da Secretaria Estadual de Meio Ambiente mostra que os problemas não se restringem aos primórdios do projeto. “Demos autorização para que construíssem uma estrada de 12 quilômetros entre duas fazendas na região de Porto Murtinho, mas as especificações para dar vazão às águas do Pantanal não foram seguidas”, relata o secretário Marcio Portocarrero. “Eles preferem fazer errado e pagar a multa depois, mas muitos danos ambientais são irreparáveis.”

No mundo do trabalho, a organização de Moon parece seguir a mesma norma, embora se vanglorie de oferecer 400 empregos diretos. Desde 1997, mais de 300 ações trabalhistas foram movidas contra o grupo. “Já pagamos R$ 500 mil em indenizações e estamos regularizando a situação dos que ficaram”, enfatiza Ferabolli. A propriedade que ele administra abriga uma boa dezena de empregados irregulares, como os tratadores
de avestruz. Eles trabalham de segunda a segunda, sem direito a folga, em troca de casa, comida e “ajuda de custo” de R$ 200. “Agora prometeram assinar nossa carteira”, diz Fábio Pinheiro dos Santos,
na fazenda há mais de um ano.

A ação mais rumorosa contra Moon está sendo movida pelo coreano Jae Sik Kim e culminou na abertura de inquérito na Polícia Federal, para apurar lavagem de dinheiro. Por causa da investigação, o sigilo bancário da organização acaba de ser quebrado. Jae acionou a Justiça argumentando ter sido contratado como tradutor em 1997, mas jamais ter recebido o salário, de US$ 3 mil mensais. Na audiência, revelou ainda que suas funções incluíam ajudar a trazer divisas clandestinamente para o Brasil, seguindo orientação direta dos reverendos Kim Yoon Sang e Yang Jung Soo. De acordo com o coreano, a origem do dinheiro eram os Estados Unidos e o Japão. Procurado por ISTOÉ, Jae não quis dar entrevista. “Ele tem medo de sofrer represálias”, diz sua advogada, Renéa Guimarães. Os líderes religiosos negam a prática do crime. Pelos cálculos do presidente Kim, a organização já investiu cerca de US$ 63 milhões no Brasil. “O número certo é do Banco Central”, ressalva.

Canteiro de obras – Escaldados em lidar com denúncias e suspeitas, os homens de Moon tentam agora conquistar corações e mentes. Com a interdição do complexo Nova Esperança, eles concentram esforços na ampliação do projeto Salobra, na região de Miranda. O antigo hotel-fazenda, que já tinha ótima infra-estrutura, virou um gigantesco canteiro de obras. Se os planos do presidente Kim se concretizarem, em breve o Salobra será um ícone da exploração sustentada do meio ambiente. Junto às prefeituras, o trabalho de sensibilização passa pela abertura dos cofres. Moon, que já havia doado 29 ambulâncias a serviços de saúde municipais, está investindo US$ 300 mil na construção de um centro de diagnóstico na cidade de Guia Lopes da Laguna. Na mesma região, a escola Nova Esperança é um sucesso que já conta com 300 alunos. Nessa aproximação com os brasileiros, o principal alvo é o esporte das massas. Primeiro, Moon comprou o Centro Esportivo Nova Esperança (Cene), de Jardim. Depois, o Atlético de Sorocaba (SP). Devido à tarimba junto à cartolagem, o Cene foi até convidado para a Copa do Brasil. A alegria durou pouco. Na quarta-feira 13, o time do reverendo Moon foi goleado pelo Vitória da Bahia por 6 a zero.

Um líder enrolado

Nascido há 82 anos na pequena Chonj Ju, hoje Coréia do Norte, Sun Myung Moon parece predestinado a atuações controversas. Preso diversas vezes em sua terra natal, em 1954 fundou em Pusan (Coréia do Sul) a Igreja da Unificação, calcada na promoção dos valores da família. Ficou conhecido pela ferrenha campanha anticomunista que organizou pelo mundo. Passou por diversos países, até se naturalizar americano. Nos EUA, amargou outra temporada na prisão, por burlar o fisco, em meados dos anos 80. Também foi acusado de fazer “lavagem cerebral” em jovens incautos. Famoso por promover casamentos em massa, hoje Moon comanda um império financeiro cuja contabilidade é um segredo mantido a sete chaves. Seus investimentos variam desde a comercialização de ginseng, produzido na Coréia, a indústria automobilística até a mídia, como o jornal The Washington Times, dos EUA.