Por vaidade, brincadeira ou puro flanar alcoólico, o pintor José Pancetti apagou dois anos da sua existência ao escrever sua autobiografia na década de 1950. “Eu, campineiro, nasci em 1904”, relata ele no início do texto. Pois o engano proposital fez escola e, hoje, enciclopédias e livros de arte registram a mesma data. Na verdade, o artista nasceu em 1902, conforme afirma Max Perlingeiro, presidente da Pinakotheke Cultural, em cuja sede paulista inaugurará na quarta-feira 5 a mostra José Pancetti (1902-1958) marinheiro, pintor e poeta. Perlingeiro teve acesso à certidão de nascimento do pintor e acha muita graça no erro histórico daquele que transformou em arte “o amor exagerado pelo mar”. Marinheiro de profissão e de coração, Giuseppe Giovanni Pancetti, um filho de imigrantes italianos que cresceu na pobreza vendo as irmãs adolescentes envelhecerem precocemente nas fábricas de tecidos do bairro paulistano do Brás, pintou paisagens e, particularmente, o mar em todas as suas intensidades. As 65 obras em exibição registram este percurso dramático.

Uma curiosidade muito particular são as marcas dorsais. Pancetti criou relatos emotivos nos versos de seus quadros, transformando-os em duplas obras de arte. São quase um diário, no qual ele registra fatos e dedicatórias com extrema inocência, sem nenhum resquício de intelectualidade. “José Pancetti, campineiro, Mocanguê, Rio. Eu”, escreveu ele no verso da tela Ilha de Mocanguê (1933) junto a um auto-retrato. Exposto pela primeira vez em São Paulo, o quadro pode ser admirado pelos dois lados na exposição dividida em seis núcleos temáticos. À entrada, o visitante é saudado por quatro telas complementares: Auto-retrato, dado de presente ao filho Luiz Carlos; um retrato de autoria de Bruno Lechowski, polonês radicado no Brasil na década de 1930 e orientador de Pancetti no Núcleo Bernardelli, grupo de jovens artistas que na prática queriam democratizar o ensino da arte e ter maior participação na Escola Nacional de Belas Artes; um terceiro retrato assinado por Francisca Azevedo Leão; e um quarto de Milton Dacosta, a quem Pancetti devolveu a tela com a seguinte inscrição no verso: “Quando criança ainda ingressei na vida do mar… e fui sempre marinheiro. E hoje marinista também.”

Em atos de generosidade, Pancetti costumava presentear os amigos com seus quadros. Mas quando o mau humor lhe cobria de cinza o colorido intrínseco da sua mente, tomava-os de volta para, então, devolvê-los dias depois. A mostra não é cronológica, mas segue os passos do artista em suas andanças pelo País. É curioso notar sua inspiração no impressionista Cézanne na natureza-morta Sem título, de 1943. Ou alguns toques do pós-impressionista Gauguin nas silhuetas rotundas das mulheres nas paisagens e marinhas do Rio de Janeiro, feitas na década de 1930, período em que ele vai dominando a técnica, mas ainda mostra resquícios do aprendizado feito a duras penas. A partir de 1944, com o peso da tuberculose a lhe desbotar o ânimo, seu trabalho foi ficando mais soturno, quase expressionista, como algumas pinturas da série realizada em Minas Gerais. Seu reatamento com a vivacidade da cor acontece durante a estada de cinco anos na Bahia. É quando Pancetti tem um intenso encontro com a luz. Areal, de 1952, que ousadamente mostra uma grande faixa de areia e somente uma nesga de mar e céu, pontilhada
por poucos personagens ao vento, pode ser catalogado entre os grandes quadros da arte brasileira. O mesmo deve-se dizer da série das lavadeiras da lagoa do Abaeté, singelos retratos do cotidiano que um mestre como José Pancetti resume à mais pura arte.