Chovia no final da tarde de segunda 30, como é líquido e certo no fim de ano em Brasília, quando um envelope com timbre de “pessoal” pousou na mesa de Humberto Costa, no escritório de transição do governo Lula. Dentro, em seis enxutas páginas datilografadas, um seco diagnóstico da situação da saúde no Brasil. Nada mais natural para o destinatário, o médico pernambucano escolhido para ser o ministro da Saúde. O inusitado era a identidade do remetente: José Serra, candidato derrotado na eleição de outubro. O ministro atual considerou “muito bom” o trabalho, o que pode ser a retribuição medida à econômica avaliação que o ex-ministro fez da escolha de Lula: “Humberto é, de fato, um bom nome.”

Mais do que uma troca de gentilezas entre o atual e o ex-ministro, que dá seqüência ao festival de mesuras e elogios que animou nos últimos dois meses as agendas de Fernando Henrique e Lula, a carta é um termômetro seguro do ambiente caloroso que envolve o governo Lula
a partir da posse. A base parlamentar, sobressaltada pela inesperada ausência do PMDB no Ministério, passou incólume pelo período natalino
e ganhou fôlego com o discurso conciliador de Lula ao subir a rampa
do Congresso, na quarta-feira 1º. “O PMDB vai ajudar e colaborar nas reformas que o País precisa”, diz o líder no Senado, Renan Calheiros.
“Lula terá a maioria que precisa para aprovar as reformas”, garante o presidente do PPS, senador Roberto Freire. “Se as reformas geram benefícios para o Brasil, o Congresso irá aprovar. Não faremos a Lula
o que o PT fez a Fernando Henrique”, avisa o senador Romero Jucá, ex-líder do PSDB governista. “Não mudou nada. Nós vamos acertar com
o PMDB, com parte do PFL e até com o PSDB”, aposta o deputado Valdemar Costa Neto, presidente do PL. “O Legislativo será parceiro efetivo no apoio das reformas consideradas prioritárias pelo Executivo, entre elas a tributária, a fiscal e a previdenciária”, discursa o presidente do Congresso, senador Ramez Tebet. “Em 2003 não vamos repetir
os erros de 2002”, concede o líder do PMDB na Câmara, deputado
Geddel Vieira Lima, que foi um dia o xiita mais temido na bancada.

Com o PMDB no Ministério, o governo Lula teria uma base – 302 deputados e 51 senadores – muito próxima da maioria absoluta necessária para aprovar emendas na Constituição (308 votos na Câmara e 49 no Senado). Sem ele, a bancada governista despenca para 228 deputados e 31 senadores, insuficientes para aprovar qualquer lei por maioria simples (257 votos na Câmara e 41 no Senado). O respeitado Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) é mais otimista: cálculos da entidade garantem a Lula o voto de 220 deputados do PT e partidos de esquerda e apoio eventual de outros 180 aninhados no PMDB e no PSDB. A direita do Congresso, abrigada no PFL e no PPB, daria mais 113 votos ao governo, dependendo da negociação realizada caso a caso. Sem querer se intrometer na vida interna do PMDB, os aliados de Lula apostam no apoio de 40% até 60% dos deputados peemedebistas, impelidos pelo clamor das ruas e pelas simpatias declaradas dos três governadores sulistas – Requião (PR), Luís Henrique (SC) e Rigotto (RS).

O PT aposta no carisma de Lula, não no balcão, para atrair um pedaço
ou todo o bolo do PMDB. A gula do comando peemedebista, na versão
do Planalto, é que tirou o partido do palácio do qual foi síndico, sem cerimônia, em 14 dos últimos 17 anos, a partir do governo Sarney.
O PT havia reservado um ministério grande, tipo Integração Nacional,
e um médio ou pequeno, tipo Cultura ou Turismo, para o PMDB.
O primeiro nome, escolhido pelo partido, precisava ser avalizado por
Lula, e o segundo devia ser apontado de comum acordo entre o PT
e o PMDB. O racha peemedebista impediu qualquer consenso. O único nome que unia todos os lados era o do senador gaúcho Pedro Simon,
para os Transportes. Mas Simon recusou, preferindo ficar no Senado.
Em troca, o comando do PMDB pediu Integração Nacional e Minas
e Energia, o que espantou o PT: “Os dois juntos são praticamente
a infra-estrutura do governo. Preferimos trocar a maioria a qualquer
custo pela maioria mais trabalhosa, mas que preserva a boa imagem
do governo”, explica uma estrela pontuda de Lula. Ao desistir publicamente dos Transportes, foco permanente de escândalos
de corrupção, o PMDB deu ao PT a suspeita de que pedia duas novas pastas sem, no entanto, largar a gorda mamata que pairava sobre o DNER, hoje maquiado como DNIT. Uma frase atribuída ao ex-ministro Eliseu Padilha assustou o QG petista: “Seja qual for o escolhido, o PT
vai levar dois anos para desmontar a máquina que existe lá dentro.”

Ao pecado da gula juntou-se o vício da ofensa: “A cúpula do PMDB começou a enfiar a faca nos nossos aliados, decretando intervenção nos diretórios de São Paulo e Paraíba, punindo companheiros pelo crime de terem apoiado o Lula”, condena um graduado assessor do presidente. Apesar da queixa, a ordem no Planalto é o respeito ao dogma de não-intervenção nos assuntos domésticos presididos por Michel Temer. A gentil contrapartida da cúpula peemedebista será o respeito ao acordo que reserva o comando das duas casas do Congresso às duas maiores bancadas – ao PT na Câmara e ao PMDB no Senado. Os 20 senadores do partido já estão convocados para a eleição na sexta-feira 31 que vai apontar o nome para disputar a eleição da mesa no dia seguinte, sábado, reabertura do Congresso. A eleição do Senado acontece antes da escolha da Câmara, o que dá ao comando do PMDB a confortável certeza de que os acordos serão cumpridos. O desembarque do PMDB do Ministério Lula aguçou as ambições do PSDB e do PFL, que sonham em refazer o bloco que fez a alegria e a tranquilidade do governo FHC. José Aníbal e Jorge Bornhausen chegaram a conversar com o presidente do PMDB, na esperança de emplacar o perene Marco Maciel no Senado e o próprio Michel Temer na Câmara: “Não há hipótese de virar a mesa do acordo com o PT. O PMDB não entra nessa. Se entrasse, o PT sairia do jogo. Sem o PT, não há acordo. Sem acordo, não ganhamos a presidência do Senado. E a bancada não abre mão do Senado. Trocar o PT pelo PFL, agora, seria uma loucura”, diz o senador Renan Calheiros.

Ameaças – Mesmo sem o PMDB, um bloco PFL-PSDB poderia somar
155 deputados e 30 senadores – o suficiente para abocanhar comissões
e requisitar CPIs, velha arma petista. “Vamos ser uma oposição à
inglesa, elegante, sem caneladas por baixo da mesa. Podemos até
tomar o chá das cinco com o PT”, brinca o senador tucano Romero
Jucá. “Vou até comprar um laptop para arquivar todos os discursos do Lula. Quando o PT atacar, eu vou conferir o que o presidente dizia.
” A ameaça de CPI não intimida o presidente do PT, José Genoino:
“Se for assim, vamos aprovar todos os pedidos que estão na fila. Começando pela CPI da Privatização, da Sudam, do DNOCS…”

Bravatas à parte, todo mundo só pensa em acordo e entendimento,
à esquerda e à direita. Depois de eleger a direção do Congresso, marco do entendimento que vai pavimentar a mão dupla PT-PMDB, Lula quer aprovar primeiro a reforma da Previdência, que ameaça o caixa furado
do governo, e regulamentar o sistema financeiro, dando autonomia operacional mas não independência total ao Banco Central, definindo
um mandato para seus diretores, mas exigindo o cumprimento de metas. O Planalto não espera nenhuma má notícia do PSDB, apesar da ameaça de bloco com o PFL. E existe uma razão matemática simples para tanta segurança: o PT tem as maiores bancadas nas Assembléias de São
Paulo e Minas Gerais, dois ninhos tucanos que não podem romper a
paz construída pelos moderados Geraldo Alckmin e Aécio Neves. O
charme do poder é incontrolável. O presidente do PL, deputado Valdemar Costa Neto, que deu o vice José Alencar a Lula e ganhou de brinde
o mal-afamado Ministério dos Transportes para o mineiro Anderson Adauto, já contabiliza 20 deputados tucanos que procuram espaço
em sua agenda dispostos a abrir o bico em apoio a Lula.