As decisões tomadas na semana inaugural do mandato pelo presidente Lula revelam o grau de preocupação do novo governo com o que os petistas chamam de deterioração dos laços sociais do Brasil. A primeira reunião ministerial no Palácio do Planalto, na sexta-feira 3, foi convocada pelo presidente com uma prioridade: determinar as tarefas de cada ministro em uma ambiciosa cruzada contra a exclusão social, que Lula vai perseguir com obstinação. Nas prioridades estão os programas de combate à fome e ao analfabetismo, as reformas agrária e da previdência, e a assistência aos doentes. São medidas de emergência. “Compromissos menos programáticos e mais compromissos morais e éticos que eu quero assumir, aqui, desta tribuna na frente do povo, que é o único responsável pela minha vitória e pelo fato de eu estar aqui, hoje, tomando posse”, discursou Lula para a multidão em frente ao Palácio do Planalto. O carro-chefe da agenda dele é o programa Fome Zero, único detalhado longamente aos ministros durante a reunião de sexta-feira. O presidente não deixa dúvidas sobre isso. Adiou por um ano a licitação para a compra de 12 novos caças da FAB, no valor de US$ 760 milhões, para garantir dinheiro ao programa. Em fase final de elaboração, ele será lançado na sexta-feira 10, por Lula e seus ministros, na cidade de Guaribas, encravada no semi-árido do Piauí, uma das regiões mais pobres do País.

O Fome Zero não será uma simples distribuição de dinheiro para comprar comida. O governo quer montar uma grande campanha de solidariedade com traços educativos. Cada família cadastrada receberá um cartão magnético para comprar alimentos. Estuda-se que, em troca, os beneficiários participem de atividades comunitárias relacionadas à melhoria da qualidade de vida como, por exemplo, a construção de cisternas. A administração vai montar uma rede nacional de arrecadação de doações de empresas, ONGs, sindicatos e de pessoas físicas que poderão ser feitas até pelo telefone. O dinheiro vai engrossar o Fundo de Combate à Pobreza, que neste ano conta com R$ 2,5 bilhões. O programa de distribuição de cartões será reforçado por outras campanhas de alimentos, em convênios com prefeituras. O ministro de Combate à Fome, José Graziano, diz que a meta inicial é concentrar a distribuição de cartões-alimentação no Nordeste. “Não é só dar o peixe. É ensinar a pescar”, explica ele. O Fome Zero também inclui a criação de mais uma estatística para definir quantos são e onde estão os miseráveis a serem atendidos. Hoje, há números para todos os gostos. O governo FHC preferiu acreditar que 32 milhões de brasileiros vivem com menos de US$ 1 por dia. Para a Fundação Getúlio Vargas, são 50 milhões.

A solidariedade, marca do programa Fome Zero, também será a principal motivação do governo para outras campanhas, entre elas as anunciadas pelo ministro da Educação, Cristovam Buarque. A primeira tentará erradicar em quatro anos o analfabetismo de adultos. Para isto o governo deseja a participação de empresas, sindicatos, igrejas, entidades civis e até a contribuição de professores aposentados na tarefa. A outra campanha vai criar o programa “Escola Ideal”, que prevê a reforma
dos prédios, a instalação de computadores e a valorização dos professores. Para aplicar este programa, o governo federal terá de assinar convênios com prefeituras e governos estaduais que hoje
são os responsáveis pelo ensino fundamental. A terceira campanha imaginada pelo ministro vai mobilizar alunos, professores e até funcionários para realizar uma reforma universitária que prevê alterações dos currículos e a adaptação dos cursos às novas tecnologias e relações econômicas. Cristovam Buarque pretende contratar professores para ocupar todas as vagas congeladas nos últimos anos nas universidades. Essa idéia, no entanto, contraria a orientação do presidente de não ampliar gastos. “Escola é professor”, argumenta o ministro. O governo sabe que, para obter sucesso na implantação das primeiras medidas
de emergência, os ministros deverão trabalhar em colaboração.

União – É o que terá que acontecer entre Cristovam Buarque e o ministro das Comunicações, Miro Teixeira. Os dois pretendem utilizar o orçamento do Fundo de Universalização do Sistema de Telecomunicações (Fust) deste ano – cerca de R$ 2,6 bilhões – para informatizar as escolas. Miro tenciona implantar a internet rápida nas escolas do ensino fundamental. Cristovam Buarque quer comprar os equipamentos com os mesmos recursos, o que já provocou o primeiro constrangimento entre ministros. “Se não tivermos internet rápida nas escolas, vamos perder uma geração de crianças que não terão condições de disputar o mercado de trabalho”, defendeu Miro, que está no Ministério como representante do PDT.

Outro que aposta na política de solidariedade é o ministro do
Trabalho, Jaques Wagner. Ele pretende criar empregos e gerar renda propondo um programa de financiamento de cooperativas com
recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O banco, segundo a idéia do ministro, também poderá
injetar recursos nas empresas falidas para que os funcionários
assumam a gestão do negócio, como aconteceu na fábrica de Fogões Mundial, do Rio Grande do Sul, que voltou a funcionar e a dar lucro
em um sistema de autogestão gerida pelos trabalhadores.

Apesar da determinação de Lula, vários ministros não tiveram tempo de acompanhar a toada social. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, assumiu anunciando medidas genéricas, como ampliar o crédito para famílias assentadas e estimular cooperativas, que pouco avançaram em relação ao programa de governo divulgado por Lula na campanha. Rossetto terá que correr. Assumiu sem definir o dono de um cargo-chave para a sua pasta: o novo presidente do Incra, que é o executor do programa de reforma agrária. Além de ocupar uma pasta prioritária para o presidente, Rossetto tem o MST nos calcanhares, exigindo o assentamento de 85 mil famílias ainda este ano.

Dureza – As prioridades de Lula também incluem várias medidas urgentes que não têm o mesmo apelo popular de suas irmãs de caráter social. Pelo contrário, vão dar muito trabalho e dor de cabeça. Para começar, cada ministro está encarregado de fazer uma revisão de todos os contratos de suas pastas para reduzir gastos. Também terão que eliminar 10% dos cargos de confiança disponíveis. Pior é a situação daqueles ministérios apinhados de emendas de parlamentares, como o da Integração Nacional, comandado por Ciro Gomes (PPS). O presidenciável derrotado terá que checar os convênios fechados com prefeituras para priorizar cortes. “O critério será técnico, obedecendo as prioridades do governo”, adianta o cearense. Ciro também pretende recriar a Sudene, coisa que vai atiçar
os discursos oposicionistas do PSDB. O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, a um só tempo terá que manter a estabilidade, cumprir o severo acordo com o Fundo Monetário Internacional e garantir recursos para financiar os programas do presidente de combate à desigualdade. A proposta de autonomia do Banco Central, uma das tarefas imediatas
de Palocci, encontra resistências dos radicais do PT, que ameaçam boicotá-la no Congresso. As distribuidoras de energia já reagem à
decisão da nova ministra das Minas e Energia, Dilma Roussef, de renegociar os critérios de reajuste das tarifas de energia elétrica.
O ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Luiz Fernando Furlan, por sua vez, terá a dura tarefa de ampliar as exportações
em um cenário econômico internacional desfavorável.

Da lista de abacaxis prioritários, a reforma da previdência é o item
que mais problemas promete produzir, porque atinge em cheio a própria base de apoio de Lula. A prioridade é colocar em votação um projeto prevendo novas regras para a aposentadoria dos funcionários públicos, que perderão o privilégio das aposentadorias integrais. O ministro
da área, Ricardo Berzoini, vai elaborar uma proposta que fixa para
as aposentadorias dos servidores federais um teto máximo de dez
salários mínimos, idêntico ao dos trabalhadores da iniciativa privada. Quem quiser benefício mais alto, terá que pagar por um plano complementar. A medida está prevista no acordo com o FMI e,
como as demais, é imprescindível para equilibrar o Orçamento. O
problema é que, se falhar na agenda indigesta, o presidente Lula
terá grandes dificuldades de tocar suas prioridades sociais

Sem pressa e compaciência

O médico sanitarista Antônio Palocci assumiu o timão da economia do País ao lado de seu antecessor, Pedro Malan. Sintomaticamente, pouco falou de economia. E o pouco que falou apenas confirmou o que já vinha dizendo, com promessas de austeridade e manutenção da estabilidade. “Não podemos ter pressa. Temos que construir pedra sobre pedra com paciência”, afirmou. Referências à questão social iniciaram e encerraram seu discurso de posse, realizado no auditório do Banco Central na manhã da quinta-feira 2. “Nosso maior desafio será melhorar a distribuição de renda”, disse. O anúncio de suas metas e medidas – chamadas de “vacinas” por Palocci – ficou para a semana que vem. Já o ex-ministro Malan foi ostensivamente elogiado por seu substituto pela seriedade demonstrada nos últimos oito anos. Elegantemente, como é de seu feitio, desejou publicamente que o novo governo entregue um país melhor do que recebeu.

Mesmo vazia de novidades, a fala de Palocci pegou bem. O mercado financeiro, no primeiro dia útil da era Lula, outrora tão temida, fechou com os indicadores no positivo. O dólar caiu um pouquinho, 0,28%, fechando o dia a R$ 3,535. A Bolsa de Valores de São Paulo operou bem-humorada durante todo o dia, encerrando o pregão com alta superior a 2%. É preciso ressaltar que foi um dia de pouquíssima atividade nos mercados, quando muita gente emendou o feriado com o final de semana. A verdadeira prova de fogo de Palocci e sua equipe no mercado deverá acontecer esta semana, após o anúncio das metas e com as mesas de operação já funcionando a pleno vapor. Até lá, o novo presidente do BC, Henrique Meirelles, que toma possa na terça-feira 7, também já estará com absoluto controle da situação.

Presente à posse de Palocci, o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), José Felício, aliviou no tom das críticas em relação ao governo que acaba. “É difícil dar um cavalo-de-pau na
área econômica”, afirmou, condescendente. Já o representante dos industriais, o presidente da Fiesp, Horácio Lafer Piva, considerou
o discurso “duro”, mas coerente com o tom imposto pelo PT na campanha. Otimista, afirmou que hoje “existe um sentimento
nacional muito positivo para que se possa começar o trabalho de mudança”. Já o presidente da Federação Brasileira das Associações
de Bancos (Febraban), Gabriel Jorge Ferreira, elogiou o compromisso de Palocci com a estabilidade e a austeridade. O presidente do Bradesco, Marcio Cypriano, considerou “tranquilizadora” a decisão anunciada de enviar ao Congresso o projeto de autonomia do BC.

João Paulo Nucci