No final, o 32º Fórum Econômico Mundial, edição Nova York, foi um paradigma de relativismo: a economia globalizada está em recuperação, ou está indo inapelavelmente chafurdar no brejo da recessão? Não se chegou a uma conclusão. Tudo depende do ponto de vista do observador. É como a história do copo com água pela metade: para os pessimistas ele está meio vazio; os otimistas o vêem meio cheio. Os quase três mil financistas, acadêmicos, celebridades, oficiais de governos e ricos em geral que se reuniram no centro de Manhattan fizeram uma tempestade nesse copo d’água proverbial. Em seu encontro anual – que entre os dias 31 de janeiro e 4 de fevereiro de 2002 foi transferido da sede tradicional de Davos, na Suíça, para prestar solidariedade a Nova York pós-atentados de setembro – estas locomotivas das finanças internacionais mostraram que na teoria ninguém se entende, mas na prática todos se dão bem. Aliás, “se dar bem”, é práxis desta turma: mesmo em tempos bicudos ela ganha dinheiro fácil. Exemplo: numa das 1.425 suítes do luxuosíssimo hotel Waldorf-Astoria – totalmente fechado para abrigar com exclusividade os participantes do fórum –, uma empresa de cartões de crédito estava dando dinheiro. Para cada inscrito foi reservado um cartão com limite de US$ 100. As filas para a coleta serpenteavam pelos corredores do Waldorf. Eis aí, novamente, o relativismo: para alguns observadores da situação, uma economia onde supostos bilionários fazem fila para pegar US$ 100 não pode estar lá muito bem. Outros chegam a conclusão distinta: numa economia em que se dão US$ 100 de presente para quem não precisa, as coisas estão indo de vento em popa.

Lá fora, um exército de quatro mil policiais, agentes do Serviço Secreto, FBI, CIA e outros órgãos de segurança cumpriam com gusto o trabalho de manter turbas ignaras de manifestantes longe dos participantes do fórum. A massa era de opinião de que o copo não está sequer meio cheio: simplesmente secou, deixando sedenta a maioria dos habitantes do planeta. E por “habitantes” entenda-se não apenas seres humanos, mas também todo o espectro de fauna e flora. “A cada dia se promove um genocídio de animais neste país. São dezenas de milhares de porcos, galinhas, vacas assassinados para servir de alimento”, dizia indignada Karen Hudward, a porta-voz do movimento Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais (Peta). “Isso para não falar dos peixes que são mortos aos milhões diariamente”, completou Karen. Mas a maioria dos que protestaram durante os quatro dias de encontro estava mesmo se lixando para frangos e pescados, concentrando sua atenção nas injustiças sofridas nas sociedades dos homens. Os trabalhadores, capitaneados pela central sindical AFL-CIO – a maior dos Estados Unidos –, fizeram marcha organizada até os arredores da Lexington Avenue para levar mensagens de protesto àqueles que estavam sob o conforto da calefação do Waldorf – a média de temperatura ao ar livre era de seis graus negativos, atingindo menos 15 graus negativos com o vento. Nem mesmo o uso de gramofones conseguiu fazer com que suas vozes fossem ouvidas. A polícia havia cercado nada menos que dez quarteirões – entre as ruas 47 e 57 – da Lexington e com isso isolou completamente as vizinhanças do hotel. Uma prova inconteste de que a Park Avenue – porta de entrada do Waldorf-Astoria – é mesmo o endereço exclusivo dos ricos.

Bafafá – Poderia ter sido pior. Em Seattle, durante a reunião da Organização Mundial de Comércio, do FMI e Banco Mundial em 1999, os protestos foram tão furiosos que acabaram obrigando o cancelamento daquele conluio de financistas. Em Washington, no ano seguinte, teve mais bafafá, com ministros de Estado de vários países – inclusive o brasileiro Pedro Malan – impedidos de chegar às reuniões na sede do FMI. Até que em Gênova, no ano passado, as manifestações descambaram para a guerra aberta, provocando mortes. Isso fez com que o governo da Suíça reconsiderasse sua hospitalidade a potentados em Davos neste ano, alegando falta de recursos monetários para evitar que as cabeças coroadas do mundo das finanças acabassem rolando pelas ruas do vilarejo alpino. Daí a razão da homenagem a Nova York, cidade que depois dos atentados terroristas de setembro se transformou em fortaleza, com segurança inflada pela paranóia. A mudança de ares deu certo: 250 pessoas foram presas
antes mesmo de os participantes do fórum pisarem no Aeroporto John Kennedy. No fim das contas, cerca de mil suspeitos foram detidos e fichados pela polícia. E tudo sem que uma única vitrine de lanchonete McDonald’s ou da cafeteria Starbuck – vítimas prediletas da ira antiglobalismo – fosse espatifada.

No Waldorf, quando não estavam na fila para ganhar dinheiro ou computadores de mão – também distribuídos fartamente para gente que, na verdade, inventou o computador de mão –, os participantes do fórum debatiam. Os temas eram tão variados que causaram uma cacofonia digna de Babel. Na pauta principal estavam os assuntos: segurança globalizada frente ao terrorismo; redução da miséria globalizada; e recuperação do crescimento econômico globalizado. Na verdade, foi este último tópico que mais atraiu a atenção e discussões. Afinal, trata diretamente dos bolsos dos ternos de cortes impecáveis daqueles senhores presentes. E, apesar de o verbo “globalizar” estar presente no predicado de todas as frases das conversas, ficou provado que o globo em questão não fala a mesma língua. Duas escolas principais entraram em conflito. A primeira, com o marcante e exclusivo sotaque americano, afirmou que a economia mundial está a caminho da recuperação, pois a economia dos Estados Unidos – principal alavanca das finanças globais – dá sinais de que está saindo do túnel da recessão. O Secretário do Tesouro americano, Paul O’Neill, comandava esta vertente apontando para a diminuição dos níveis de desemprego nas últimas estatísticas do período em seu país. “A economia americana dá mostras inegáveis de que está se recuperando. Não só o desemprego teve índices menores, como houve um aumento nos índices de confiança dos consumidores (um dos indicadores da saúde econômica do país). O consumo tem aumentado de modo geral e as compras de casa própria também estão em ascensão”, disse O’Neill a ISTOÉ.

Cor-de-rosa – Já o resto do mundo, tendo como porta-voz principal a União Européia, acredita que a luz que os americanos vêem no fim do túnel é, na verdade, o farol da locomotiva da recessão. “Não vemos a situação com as lentes cor-de-rosa dos óculos americanos”, disse a ISTOÉ Klaus Zimmermann, presidente do Instituto Alemão de Pesquisa Econômica, de Berlim. “Os investimentos feitos na área de novas tecnologias foram enormes. E a recuperação econômica americana só virá depois que estes recursos forem utilizados. Calculo que isso vai demandar pelo menos três anos para ocorrer”, disse. “Não me parece que a economia americana esteja pronta para ser lançada rumo ao crescimento e, mesmo que esteja, não se vêem sinais de que o resto do mundo vá acompanhar”, disse Helga Kapner, assistente especial do gabinete econômico do governo da Inglaterra. Segundo ela, os dados apresentados pelos representantes americanos não são indicativos de recuperação alguma. “O nível de desemprego só caiu por causa de contratações temporárias. Na indústria mesmo, o nível de desemprego aumentou. E os investimentos em produção diminuíram sensivelmente. O consumo americano continua ativo, assim como aumenta a dívida dos americanos. Estão apenas seguindo os hábitos de consumo adquiridos durante a bolha de prosperidade anterior, mas suas carteiras estão já no vazio da recessão. Quando a cobrança da conta chegar para valer não vai sobrar nenhum trocado para o consumo de produtos, nem americanos nem de outros países”, disse Kapner.