Mais articulados do que nunca. Foi assim que os participantes do 2º Fórum Social Mundial deixaram Porto Alegre. A rede internacional de resistência ao neoliberalismo, como poderia ser chamada, conseguiu mobilizar a opinião pública mundial, trocou figurinhas e informações importantes entre si e aumentou a temperatura do debate em torno dos rumos do planeta. Daqui para a frente, promete essa turma, os grandões do mundo – empresas multinacionais como a Coca-Cola e instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC) – não terão nem mais um minuto de sossego.

Acadêmicos, pesquisadores, escritores e militantes das mais variadas causas presentes em Porto Alegre não buscavam exatamente um consenso. Mais importante, garantiam, era trocar experiências, angariar apoio às suas respectivas causas e alinhavar alguns nós dessa teia que se propõe uma tarefa para lá de grandiosa: mudar o rumo das coisas, em direção a uma globalização que assegure os direitos humanos e imponha freios às tais corporações, como preferem chamar as multinacionais.

OMC na mira – Em alguns casos, entretanto, as opiniões convergiram bem. Como, por exemplo, na necessidade urgente de mudanças radicais na forma de atuação das instituições internacionais que regulam a vida dos países de economia capitalista. O “outro mundo” da turma que foi à capital gaúcha, como afirmaram alguns dos mais respeitados participantes do evento, esbarra em uma pedra considerável a bloquear o caminho: os chamados organismos multilaterais, que têm o poder de, por exemplo, impôr sanções a um país-membro quando este quebra uma de suas regras. Três deles ganharam especial atenção no 2º FSM: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e, a “novata” do grupo, a Organização Mundial do Comércio.

Mais conhecida no Brasil e nos países de língua espanhola pela sigla OMC, a Organização Mundial do Comércio foi a bola da vez. “É uma instituição talvez mais poderosa do que o próprio FMI. Juntas são as grandes máquinas de fazer miséria”, afirmou o economista malaio Martin Khor. Consultor da Organização das Nações Unidas (ONU), formado pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Khor dirige uma rede de ONGs de países do Terceiro Mundo. Para ele, a missão da OMC é dupla: ao mesmo tempo que defende o livre comércio nas áreas de interesse dos países desenvolvidos – manufaturas de modo geral –, trata de garantir regras que protejam empresas e negócios do Primeiro Mundo – a lei de patentes para a indústria farmacêutica, por exemplo. “Por causa das patentes que a OMC defende, uma pessoa com Aids gasta anualmente US$ 12 mil ao ano em remédios nos EUA. Enquanto os genéricos, produzidos no Brasil ou na Índia, saem por US$ 300 ao ano”, diz Khor.
É preciso, afirma ele, que todos os acordos fechados no âmbito
da OMC sejam revistos, ao mesmo tempo que vários temas importantes, como o das patentes, saiam simplesmente de sua alçada. Além disso, Khor sustenta que os países devem ter o direito de criar barreiras a importações e também dar subsídios, sem correr o risco de retaliações
da OMC, como ocorre hoje. “São instituições malditas, que precisam
ser abolidas”, afirmou o economista e pesquisador filipino Walden Bello, um dos criadores da ONG Focus on the Global South, especializada
em industrialização e em seus efeitos sobre o meio ambiente.
Ex-diretor-executivo da Food First, uma das mais ativas ONGs americanas, Bello não poupa críticas à OMC, ao FMI e Banco Mundial. “Não precisamos que essas instituições incorporem preocupações sociais à sua ética neoliberal. Precisamos de novas instituições, que expressem os desejos da sociedade para o que podemos chamar de des-globalização”, afirmou Bello.

“A resistência será transnacional como o capital”, como dizia uma das faixas dos vários protestos realizados na Europa. Mas foi na segunda edição do Fórum Social Mundial – que conseguiu a proeza de reunir uma multidão de mais de 50 mil pessoas de 131 países durante seis dias – que o cenário dos embates ficou mais nítido. A rede de ONGs, movimentos sociais e sindicatos, de um lado, e a rede das instituições financeiras e grandes multinacionais, do outro, travam uma queda de braço para ver quem influi mais no rumo da globalização, num mundo cada vez mais violento e dominado pelo radicalismo. Até aqui, os de Porto Alegre levaram a pior, mas o jogo, consideram, já começou a virar. Não foi à toa que a música Imagine, de John Lennon – uma ode à paz –, tocou exaustivamente nos corredores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Porto Alegre, o principal ponto de encontro do FSM. Só era páreo para o jingle criado especialmente para o evento, com seu refrão “Um outro mundo é possível”.

Apesar dos protestos de sempre contra os Estados Unidos – um boneco representando o Tio Sam foi queimado durante passeata contra a Área de Livre Comércio, a Alca – e do sentimento de revolta contra os bombardeios americanos no Afeganistão, neste ano a delegação vinda da terra de Bush aumentou oito vezes com relação ao ano passado, com 400 delegados, num total de 15.230. “Foi uma surpresa muito boa para nós. Precisamos reforçar o movimento dentro dos Estados Unidos”, comemorou Cândido Grzibowsky, um dos organizadores do fórum. Desta vez, as ONGs, sindicatos e movimentos sociais decidiram colocar mais lenha na fogueira das pressões: vão elaborar uma lista com as dez multinacionais consideradas mais irresponsáveis do ponto de vista social, ou seja, que desrespeitam os direitos humanos, trabalhistas e ambientais. Elas serão alvo de um boicote global. A mobilização contra a Coca, por sinal, será a primeira e está marcada para julho deste ano. “Poderíamos levá-las a uma bancarrota política e assim daríamos o exemplo para as outras”, exagerou Kevin Danaher, da Global Exchange.

Desobediência civil – Uma das estrelas do Fórum, a jornalista e escritora canadense Naomi Klein, defensora da desobediência civil, ressalta que é preciso superar a fase da guerra aos símbolos do capitalismo e passar à etapa das mudanças reais através das pressões às empresas. Autora do badalado livro Sem logo, considerado pela crítica do The New York Times como a “bíblia” dos militantes antiglobalização, Klein elogia a pluralidade do movimento e alerta que há muito mais do que dois mundos à nossa disposição. “Temos que expor à luz todos os mundos invisíveis que existem entre o fundamentalismo econômico do ‘Mcmundo’ e o fundamentalismo das guerras religiosas”, diz.

Porto Alegre foi mais um passo nessa caminhada, dizem os que foram ao evento, assim como o fórum do ano passado, os protestos de Seattle, Gênova e Washington. Barcelona, na Espanha, tem tudo para entrar nesse calendário. Lá acontecerá nos dias 15 e 16 de março a próxima cúpula dos chefes de Estado europeus. Adivinhe quem estará lá mesmo sem ser convidado?

Viva a diversidade

Mais de 11 mil jovens de 52 países se reuniram na capital gaúcha para provar que é possível conviver democraticamente com as diferenças. Haja diferença! Durante seis dias, anarquistas, socialistas, ambientalistas, neo-hippies, sem-terra, gays, punks, clubbers, curiosos e engajados em geral se uniram no II Acampamento do Fórum Social Mundial para discutir alternativas ao neoliberalismo e demonstrar que um mundo melhor não é necessariamente utópico – é, sobretudo, baseado no respeito às diferenças.

A réplica do “mundo ideal” foi montada num parque público em Porto Alegre e batizada de Harmonia, com chuveiros coletivos, banheiros químicos, espaço de coleta seletiva de lixo, galpões com computadores e até uma eclética rádio comunitária. No espaço restante via-se um mar de barracas coloridas, faixas estampadas com o rosto de Che Guevara, Karl Marx e Fidel Castro e mensagens políticas de diversas linhas ideológicas. O espaço foi batizado de Cidade da Juventude Carlo Giulianne, em homenagem ao jovem italiano assassinado pela polícia num protesto em Gênova no ano passado. Durante o fórum, os milhares de “moradores” da Cidade participaram de debates, palestras e oficinas, assistiram a vídeos, peças de teatro e shows. As atividades eram abertas, simultâneas, quase ininterruptas, e pluralidade era palavra de ordem. Como bem definiu o estudante de história Ramon Szermeta, 20 anos, de São Paulo,
“as pessoas que estão aqui são contra qualquer forma de pensamento único”. Sob essa bandeira, os franceses Sylain e Paul, 19 e 21 anos, aproveitaram a manifestação contra a Alca (Área de Livre
Comércio das Américas) para lançar duas tortas na cabeça da
ministra francesa de Juventude e Esporte, Marie Buffett, que
também participava do protesto.

Enquanto os mais rebeldes gritavam palavras de ordem contra o neoliberalismo, a gaúcha Alice Floriano, 18 anos, e sua filha Ágatha, três, participavam placidamente de uma oficina de artesanato dentro do acampamento. “Não sou membro de partido ou organização. Gosto de fazer arte”, disse ela. A segurança garantiu a tranquilidade dos participantes. Policiais e vigilantes contratados protegiam a área permanentemente, seguindo a orientação de não incomodar ninguém por uso de drogas, álcool ou conduta sexual.

Criado a partir do Fórum Social Mundial, a primeira edição do Acampamento da Juventude, em janeiro do ano passado, contou com a participação de cinco mil jovens. Esse ano, o número passou do dobro: 11,6 mil pessoas. A organização ficou a cargo de jovens voluntários das universidades, partidos e ONGs. A moçada cuidou de tudo: do cadastramento dos participantes à manutenção do portal. Quando a maioria dos jovens deixou a cidade de Carlo Giulianne, na quarta-feira 6, havia pouco lixo no chão e a grama estava marcada apenas pelas barracas que ali foram fincadas. Nas mochilas cada um levava uma dose a mais de esperança para construir um mundo melhor.

Juliana Vilas – Porto Alegre