Estava tudo combinado para parecer manifestação divina. Na noite de 25 de dezembro, quando se comemora o nascimento de Cristo, chegaria ao mundo a nova encarnação da raça humana. O parto atrasou e a cesárea, cercada de mistério e em local desconhecido, foi adiada para a quinta-feira 26 de dezembro, quando teria vindo à luz Eva, o primeiro clone humano. A menina é a cópia idêntica da mãe, uma americana de 31 anos, casada com um homem infértil e que há dez lutava para ter o segundo filho, mas se recusava a procurar um banco de esperma ou gerar um bebê de proveta. A alternativa foi apelar ao sobrenatural. O casal disposto a gastar US$ 200 mil para realizar o sonho de procriar contratou os serviços da Clonaid, uma empresa surgida em 1997 da seita
religiosa dos raelianos, que acredita na vida humana como
obra de ETs que povoaram a Terra e incumbiram a humanidade
de clonar a si mesma para ocupar novos planetas.

Em vez de usar as células reprodutivas dos pais, como acontece
na relação sexual, a equipe chefiada pela bioquímica francesa Brigitte Boisselier, presidente da Clonaid, teria produzido uma réplica usando
uma célula materna. O processo, idêntico ao que deu origem à ovelha Dolly, acendeu o alarme na comunidade científica. Espera-se agora um teste de DNA para provar se Eva é uma cópia perfeita de sua mãe. Antes do resultado, a bispa Brigitte solta novos petardos, que, pelo absurdo, lembram as motivações nazistas de criar uma raça soberana e pura.

O grupo, composto de 55 mil almas, segue a filosofia ditada pelo
ex-jornalista automotivo e bon vivant Claude Vorilhon. Em 1973,
ele jura ter recebido a visita de aliens que o instruíram a difundir
a clonagem como forma de alcançar a eternidade. Cercado de belas mulheres e defensor dos prazeres da vida e da carne, Vorilhon,
ou Raël, como prefere, se diz um profeta em pé de igualdade com
Cristo. “A clonagem é o primeiro passo. Logo teremos tecnologia
para copiar um adulto. E no futuro será possível transferir a mente
e a personalidade ao clone, como se faz num computador. Antes
de morrer, cada um se transfere para um novo corpo”, ensina Raël.

Sua principal seguidora, a bispa Brigitte, fala dos próximos clones como se anunciasse um novo xampu: “Implantamos dez embriões, houve
cinco abortos e nenhuma aberração. Cinco vingaram e os bebês devem nascer em janeiro, quando vamos implantar mais 20 embriões.” Eva, o primeiro clone, nasceu num país da América do Norte, diz Brigitte, sem especificar qual. Nas várias vezes em que falou a ISTOÉ, por telefone,
a bispa e o fundador da seita estavam no Canadá, onde funciona
seu escritório. O próximo clone, diz a bispa, será filho de um casal de lésbicas do Norte da Europa. Os outros três estariam em gestação em países da Ásia e da América do Norte e foram gerados a partir de células de bebês mortos. Dentre as cinco mães que emprestaram seu útero
para a gestação, uma delas é Marina, a filha de 22 anos de Brigitte.

“O fato de um grupo religioso ter conseguido o primeiro clone
é a prova cabal de que a pesquisa entrou no lugar da religião, no
sentido pensado por Freud e Karl Marx, para tapar buracos”, analisa
a psicanalista Miriam Shnaiderman. Na prática, o feito raeliano confirma
a busca do ser humano sem falhas, perfeito. A ânsia por clonar
humanos, diz Miriam, é a concretização da cultura do narcisismo,
do corpo ideal, do egoísmo. “Vai ser preciso uma ética clara para
definir em que condições e para que se pode produzir um clone.”

Para a ciência, não há evidências de que Eva seja um clone. Ainda que o teste de DNA comprove que o anúncio dos raelianos não passa de fraude, há nos bastidores uma corrida contra o tempo para fabricar cópias humanas. O ginecologista italiano Severino Antinori, que ficou famoso por inseminar uma sexagenária, diversas vezes veio a público anunciando seu bebê clonado para o início de 2003. Seu antigo colaborador, o médico Panayiotis Zavos, também tenta carreira solo para criar seu próprio exército de replicantes. Sem contar os chineses e os coreanos, que anunciaram a intenção de produzir humanos em série. Uma pesquisa recente revelou que três em cada cinco cientistas crêem que em 25 anos um clone viverá entre humanos. Tudo indica que ele será tão criticado quanto em 1978 foi Louise Brown, o primeiro bebê a nascer de inseminação artificial.

“A pesquisa dos raelianos parece ser pirata e, embora não tenhamos discutido o suficiente suas implicações morais e éticas, é quase
certo que vamos conviver com o clone”, reconhece Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. A falta de amadurecimento moral se reflete na carência de leis que preparem
a sociedade para conviver com esse tipo de mudança.

Blade Runner – Além da discussão ética, há preocupações técnicas. Pelo atual ritmo da clonagem, ainda é cedo para testá-la em humanos. Os riscos de anomalia e malformação genética são grandes. Os
animais clonados nascem com órgãos de tamanho desproporcional,
têm menor resistência imunológica e sofrem de envelhecimento
precoce. O melhor exemplo é Dolly, a ovelha, que, apesar de ter
cinco anos de idade, tem o organismo da mãe, de 12 anos, e sofre
de reumatismo. Assim como aconteceu com a ovelha, nem sempre
a clonagem dá certo nas primeiras tentativas. Antes de Dolly nascer,
277 embriões foram implantados e sucumbiram antes do parto. Sobram
a dúvida e a suspeita de que as falhas devem se repetir entre
humanos, com consequências imprevisíveis.

“Um clone humano pode ter defeitos biológicos, genéticos e fisiológicos que só serão descobertos muitos anos depois”, explica Garrafa. Assim como já antecipou a ficção científica, a criação do clone inaugura uma raça frágil, com mutações desconhecidas. No filme Blade Runner, o caçador de andróides, rodado em 1982 pelo diretor Ridley Scott, o ator Harrison Ford percorre a Los Angeles de 2019 para eliminar os replicantes, humanos criados artificialmente à imagem de seres reais, com uma particularidade: a ausência de memória.

“As invenções científicas estão sempre ligadas a mudanças na sociedade”, reflete o filósofo Renato Janine Ribeiro. Não é à toa
que, em 2001, a novelista Gloria Perez escreveu O clone, em que
um cientista concretiza o desejo de recriar a vida. Na novela, alguns temas reais vieram à baila, entre eles as relações incestuosas
com o clone, a legitimidade dos pais e o direito à herança.

Para o filósofo Janine Ribeiro, as implicações não terminam aí. O desejo atrás do clone é produzir réplicas que seriam o reflexo dos pais, que nascem com o futuro pré-determinado. No fundo, é a intolerância com o diferente, com a imperfeição que nos faz humanos. “Como o papel dos pais diminuiu muito, não há como evitar a frustração de criar um filho à sua imagem e semelhança que seja diferente de quem o gerou. Graças a Deus, os filhos são como caixas de surpresa”, diz o pensador.

A preocupação maior dos cientistas agora é com os reflexos dos atos dos fanáticos religiosos. Teme-se que o Vaticano e o presidente americano George W. Bush façam valer suas reivindicações de proibir qualquer tipo de clonagem. Até aquelas que permitem usar células para criar novos órgãos e reverter doenças como o mal de Alzheimer e a diabete. É um preço elevado demais para um delírio fantasioso.