Sequestros ousados, organizações de esquerda treinadas na guerrilha, morte de prefeitos da oposição, atuação policial pouco ortodoxa, exploração política, extradições, motivação duvidosa. A mistura desses ingredientes explosivos ao sequestro do publicitário Washington Olivetto põe numa encruzilhada política a segurança pública, governos e os partidos, principalmente os de oposição. Em dezembro de 1989, às vésperas das primeiras eleições presidenciais pós ditadura militar, o empresário Abílio Diniz é sequestrado e libertado diante das câmeras de tevê. Dez sequestradores que integravam o Movimento de Izquierda Revolucionário (MIR), do Chile, e Frentes Populares de libertação de El Salvador (FPLS) foram presos. O pesadelo de Diniz acabou e a festa policial começou: o crime fora cometido por ativistas de extrema esquerda e o episódio foi usado politicamente. Os sequestradores foram apresentados à imprensa com camisetas do PT, encontradas junto com material de propaganda de Luiz Inácio Lula da Silva num dos cativeiros. Ignorando seus próprios manuais, a polícia se deu por satisfeita com as prisões e encerrou o caso, mesmo sabendo que outros integrantes do MIR escaparam e poderiam continuar a seguir seu objetivo: financiar a guerrilha em El Salvador.

Agentes da Polícia Federal asseguram que a ação desses grupos continuou no Brasil, mas não sabem ao certo se para financiar a guerrilha na América Latina ou se por motivo mais capitalista do que ideológico de esquerda: o dinheiro pelo dinheiro. No dia 11 de dezembro de 2001, 13 anos depois do caso Diniz, a história se repete. Outro grupo de esquerda, a Frente Patriótica Manuel Rodriguez (FPMR), antigo braço armado do PC chileno, teria gasto US$ 100 mil para tentar arrancar pelo menos US$ 10 milhões de Washington Olivetto. Ele passou 53 dias trancado num cubículo de três metros por um num cativeiro localizado no bairro do Brooklin, em São Paulo. O pesadelo só teve fim graças a um golpe de sorte. Um policial comunitário desconfiou do comportamento de um grupo que havia alugado um sítio em Serra Negra (SP) e acionou a polícia. A corporação, que andava em baixa depois dos crimes bárbaros registrados em São Paulo, voltou a fazer festa. Desbaratou o grupo, diagnosticou a presença de ativistas de esquerda no crime e prendeu um dos homens mais importantes da FPRM, Maurício Hernández Norambuena, o comandante Ramiro, cabeça do sequestro.

A polícia, no entanto, sabe que mais de dez homens do grupo estão soltos e teriam uma lista de sequestráveis brasileiros. Enquanto isso, a discussão sobre a possível extradição dos criminosos volta ao noticiário, respingando na oposição o ônus por ter trabalhado pelo tratado até então inexistente entre Brasil e Canadá, origem de dois dos sequestradores de Diniz. “Encerrar o caso Diniz foi um erro. Esqueceram que muitos escaparam e que ideologia não proscreve”, diz um policial federal que desde a semana passada rastreia os desdobramentos do
caso Olivetto. “Sequestros como esse e como o que vitimou o prefeito
de Santo André só deixarão de acontecer quando a segurança for
tratada com prioridades técnicas e não com base em critérios políticos”, adverte o coronel Geraldo Cavagnari, coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. A mira da PF está voltada para uma misteriosa brasileira e um argentino. Trata-se de uma gaúcha conhecida por
Maria Ivone e de Miguel Villabela. Testemunhas garantem que ela
teria atuado também no sequestro de Diniz.

O publicitário saiu ileso do cativeiro na noite de sábado 2 e assegurou não ter pago resgate. Na semana passada, enquanto policiais da Divisão Anti-sequestro (Deas) de São Paulo comemoravam, a PF começava a traçar planos para entender as dimensões e os desdobramentos políticos da FPMR. A prisão do comandante Ramiro – condenado à prisão perpétua três vezes no Chile por tentar matar o general Pinochet em 1986, ter participado do atentado que vitimou o senador Jaime Gusmán, em 1991, e ter sequestrado o filho do dono do jornal El Mercurio – está longe de resolver o problema. A Interpol e órgãos de segurança chilenos dizem que outros quadros “frentistas” circulam por São Paulo. O PIB paulista, a fragilidade das instituições policiais e a diversidade cultural da cidade são atrativos para as quadrilhas internacionais. Entre os sequestradores que ainda não foram pegos estão homens do mesmo porte de Norambuena. Dois deles, Ricardo Salamanca, conhecido como “El Negro”, e Manuel Patrício Ortiz Montenegro foram içados por um helicóptero, junto com Norambuena, de uma penitenciária em Santiago, em 1996.

Depois de prender seis sequestradores e descobrir seis imóveis alugados pelo grupo, a polícia trabalha com a hipótese de que Olivetto seria apenas uma das vítimas e que o valor exigido por sua libertação, US$ 10 milhões, teria como destino setores da esquerda armada da América Latina, precisamente a guerrilha colombiana. Outra hipótese seria formar um caixa para financiar outros sequestros. A identificação do colombiano Frederico Antonio Aribas, 31 anos, reforça a tese sobre uma articulação envolvendo mais de uma organização. Junto com os dois foram presos os argentinos Alfredo Augusto Cordobez Moreno, 31 anos, Marcos Rodrigues Ortega, 29, a chilena Maitê Anália Bellon, 24, e a espanhola Rosa Malia Ramos Quiroz, 38. “Norambuena não entra em detalhes sobre o destino que seria dado ao dinheiro. Mas a tecnologia aplicada no sequestro de Olivetto não é amadora”, disse o delegado Wagner Giudice, chefe da Deas.

Sorte – A descoberta do grupo e a libertação de Olivetto, porém, não são resultado das investigações de Giudice. O primeiro a levantar suspeitas sobre os estrangeiros que alugaram o sítio em Serra Negra foi o guarda municipal Francisco Bueno. Ele estranhou que o grupo permanecesse trancado em casa, sem usar a piscina ou passear. Então, passou a bisbilhotar a casa. Narrou suas suspeitas à PM e a Justiça concedeu então ao delegado Sidney Poloni uma ordem de vistoria. Pensavam tratar-se de tráfico de drogas. O caso ganhou outra dimensão quando encontraram duas pistolas calibre 9 milímetros com numeração raspada, 50 gramas de maconha e algumas cartas que, isoladas, nada diziam. O delegado telefonou para a Deas, mas não acreditaram na relação com o caso Olivetto. Ele comunicou-se então com outro colega, Rui Fontes, do setor de roubo a bancos do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), que seguiu para Serra Negra. As ligações começaram a surgir através de destinatários das cartas encontradas no sítio: a mulher de Olivetto, Patrícia, e os amigos do publicitário, Javier Ciuret, sócio na W/Brasil, e Gabriel Zellneister.

Sem álibi, Norambuena admitiu que tinha Olivetto em seu poder, mas impôs condições para negociar. Obrigou a polícia a circular com ele até escolher um orelhão para avisar seus companheiros que a operação havia fracassado. “Soltem o cavalheiro. Estamos presos”, disse, na madrugada de sábado, a um interlocutor. Outra parte do grupo abandonou o cativeiro, mas Olivetto só foi encontrado à noite, com a ajuda da estudante de medicina Aline Dotta. Ela ouviu os gritos do publicitário
e acionou a PM.

Até as prisões, a FPMR era a única organização ligada ao que resta da esquerda clandestina da América Latina a só colecionar êxito e uma montanha de dólares extorquidos no Brasil. Segundo dados da PF e da Interpol, teriam sido eles os autores dos sequestros do banqueiro Antonio Beltran Martinez e dos publicitários Luis Sales, presidente da Salles Interamericana de Publicidade S/A, em 1989, e Geraldo Alonso, dono da Norton do Brasil S/A, em 1993. Beltran pagou um resgate de US$ 4 milhões, Sales US$ 2,5 e Alonso, US$ 3. As operações de sequestro de Diniz e Olivetto são semelhantes, mas feitas por grupos diferentes. “Eles beberam na mesma fonte, mas são grupos bem distintos”, garante o delegado Godofredo Bitencourt Filho, diretor do Deic. O objetivo real é localizar ativistas que escaparam e identificar outras células de organizações que ainda estariam estabelecidas em São Paulo.

Reação – As críticas recebidas pelo PT por ter defendido e intermediado a extradição dos sequestradores de Diniz e a vinculação do partido ao radicalismo desses grupos foram rebatidas pelo presidente nacional do PT, deputado José Dirceu (SP). “É inacreditável. Somos vítimas de atentados e viramos réus. O sequestro do Diniz nos prejudicou e nada tínhamos a ver com aquilo.” Quanto à volta dos estrangeiros, ressaltou que os sequestradores, no início de 1999, iniciaram uma greve de fome que durou 46 dias pela extradição. “Fomos chamados para negociar. O governo defendeu a extradição, o José Gregori (ministro da Justiça), também. Caso os canadenses morressem, isso agravaria a situação. Havia pressão da comunidade internacional, o governo tinha medo de que algo acontecesse com eles, isso sem falar das relações comerciais entre os dois países. Pode se discutir se foi um erro do PT pedir a extradição ou não. A partir daí insinuar que não temos compromisso com a democracia é demais.” Dirceu comparou, por exemplo, o comportamento da polícia no trato do caso Olivetto com o caso Celso Daniel: “O PT, a prefeitura, os amigos do prefeito, o próprio Celso e sua família viraram suspeitos. Isso não aconteceu com Olivetto. Denunciaram casos e coisas. Isso foi alimentado pelo Planalto. Vazaram informações sobre o Celso da mesma forma que articulistas associam os dois sequestros. É pura má-fé.” Dirceu, que cobra mais ação no caso Celso Daniel, assegura que o partido “está preparado para uma campanha muito mais pesada do que essa. O Saulo (de Abreu Filho, secretário de Segurança de São Paulo) fazia dossiês contra prefeituras do PT em 2000 para o governo paulista. Sempre combatemos o crime organizado, o tráfico e agora passamos de vítimas a réus”, concluiu.