Uma vítima recente de bala perdida no Rio de Janeiro aproveitou o interesse dos repórteres para anunciar que trocará a cidade pelo lugar mais distante possível. Até aí, tudo nos conformes. Ela não foi a primeira nem será a última a dizer isso. Fez o que convencionalmente se espera que façam os cariocas desencantados com a segurança pública: acertar em cheio o alvo difuso, espinafrando genericamente o Rio de Janeiro. Não tem erro.

A reação já ficou tão comum que parece constar de algum manual da indignação urbana, que pode não existir concretamente, mas todos cumprem, ao contrário das normas que ninguém cumpre, embora existam concretamente. Quem sobrevive a um tiroteio no Rio de Janeiro tem esse inalienável direito. Mas deve exercê-lo, de preferência, conforme os estatutos.

E, no caso, a vítima passou dos limites. Em vez de se ater à ameaça de desertar da cidade, segurando as aspas do dia seguinte dentro de limites publicáveis, com a garantia de que nenhuma estatística – e muito menos um repórter – tentará saber depois se ela cumpriu o projeto de mudança, e com que resultados, ela falou demais.

Não disse um palavrão. E, mesmo que dissesse, palavrão em letra de forma não espanta mais os leitores. Disse uma palavra curta e forte, que não costuma frequentar as páginas do noticiário policial no Rio de Janeiro. Essa palavra era "frio".

Ou seja, ela quer se mudar da cidade para escapar não só da insegurança pública como "do frio". Que frio? O de julho, que naquela semana emplacava nos jornais a temperatura mais baixa do ano. Vinte graus centígrados. Ou 21,2 graus, no centro. E isso num mês em que duas ou três chuvaradas deixaram o Rio de Janeiro estalando de novo, brilhando debaixo de céus lavados, com manhãs resplandecentes, tardes frescas e noites com temperaturas tão amenas que a população exerceu como nunca a prerrogativa de enfrentar essa miniatura de inverno com a roupa que quisesse, produzindo nas ruas as mais variadas misturas de agasalho com camiseta.

Está aí uma razão para ficar no Rio de Janeiro, esticando a curta temporada de sol quente e brisa fria, antes que a passagem da estação traga de volta o verão sem-fim de todos os outros meses do ano, ou que o tal do aquecimento global nos leve do calendário essa trégua climática de uma vez por todas.

O verão carioca que nos perdoe, mas ele às vezes não parece feito para amadores. É para profissionais do calor, como surfistas ou ambulantes de praia. Estende-se a perder de vista, numa sucessão interminável de dias sufocantes. Para atravessá-lo de ponta a ponta, só mesmo parando para tomar fôlego, como as caravanas do deserto, nos oásis artificiais dos ambientes refrigerados.

Mas seu inverno é ameno. Pode-se dizer dele tudo, mesmo que seja insuportável. E, na hora em que o frio vai parar, como a violência urbana, na categoria dos problemas insolúveis da cidade, algo anda muito errado, e não é com ela, mas com a moda de falar mal do Rio de Janeiro. Se qualquer pretexto serve, todos deixam de ser sérios.

Marcos Sá Correa é jornalista e editor da revista Piauí