Quando cumpria pena pelo sequestro do empresário Abílio Diniz, o canadense Robert Spencer recebeu em sua cela no Carandiru, em São Paulo, um livro que causou polêmica entre os sequestradores. O livro sugeria que aquele sequestro, bem como outras ações violentas atribuídas a ex-revolucionários latino-americanos, tinha o dedo (ou a mão) de Cuba. Tratava-se de Utopia unarmed – The latin american left after the cold war (traduzido depois no Brasil como Utopia desarmada – intrigas, dilemas e promessas da esquerda latino-americana), do cientista político e atual chanceler do México, Jorge G. Castañeda. O personagem principal dessa trama era o misterioso e fascinante Manuel Piñeiro Losada, o Barbarroja (barba ruiva), morto em 1998. Piñeiro fora o chefe da inteligência cubana até 1974 e depois responsável pelo Departamento América, encarregado das relações de Havana com as organizações revolucionárias latino-americanas. “Quando deixou de receber dinheiro suficiente para armar e apoiar a esquerda revolucionária, e portanto para manter sua posição em Cuba, Piñeiro recorreu a outras medidas e às próprias organizações revolucionárias, pedindo-lhes que falsificassem documentos, recebessem e enviassem mensagens e, logicamente, arrecadassem fundos para a compra de armas”, escreve Castañeda, citando como fonte, entre outras, o ex-agente de inteligência cubano Jorge Masetti.

Os funcionários do Departamento América escolhiam militantes de diferentes organizações latino-americanas e sugeriam a eles que realizassem sequestros e assaltos a bancos nos países mais ricos da região. Por isso, concluía o analista mexicano, era factível supor que uma série de roubos e sequestros de empresários no México e no Brasil – como o de Diniz –, atribuídos a ex-revolucionários do Cone Sul que atuavam por conta própria, fosse na verdade operação do Departamento América. “O Piñeiro treinou todos esses grupos, era o homem que organizava a logística na América Latina. Ele tinha conhecimento de todas as ações sujas que se desenvolviam no continente”, disse a ISTOÉ Raimundo Rosélio Costa Freire, 37 anos, o brasileiro que participou do sequestro de Abílio Diniz. Atualmente em liberdade condicional, Rosélio é estudante de história em Fortaleza.

Durante algum tempo, o centro dessas atividades pouco ortodoxas de Piñeiro foi o MIR chileno (Movimento de Esquerda Revolucionária), que realizou o sequestro do dono do Grupo Pão de Açúcar numa operação conjunta com as Forças Populares de Libertação (FPL) de El Salvador. “O MIR era a menina-dos-olhos de Fidel”, diz Rosélio. Mas para o ex-agente cubano Jorge Rosseti, aquela organização se transformou em “tropa de choque” de Piñeiro e do Departamento América justamente porque perdeu prestígio perante Fidel Castro. A partir de 1983, o MIR foi suplantado pela Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR) como principal grupo armado de oposição à ditadura militar do Chile. Durante muito tempo, Fidel jogou todas as suas fichas na FPMR – formada por comunistas chilenos treinados em Cuba –, que se tornaria a mais poderosa organização terrorista a atuar no Chile entre 1983 e 1995. A Frente quase conseguiu matar Pinochet num atentado em 7 de setembro de 1986. Fidel só retirou publicamente seu apoio à organização em 1991, depois que ela assassinou o senador Jaime Guzmán.

Sergio Galvariano Apablaza, futuro líder da FPMR, conhecido como “comandante Salvador”, foi um dos 200 jovens comunistas chilenos exilados em Havana que, desde 1975, tinham ingressado nas Forças Armadas Revolucionárias de Cuba (FAR) e se graduado como oficiais de carreira. Esses militares chilenos formados na ilha seriam a espinha dorsal da FPMR. A idéia de transformar militantes comunistas chilenos em oficiais das FAR partiu do próprio Fidel Castro. Segundo o jornal chileno La Tercera, o ditador fez a oferta em junho de 1974, em Havana, ao secretário-geral em exercício do Partido Comunista Chileno (PCC), Volodia Teitelboim. Naquela época, os comunistas chilenos estavam se sentindo responsáveis pelo golpe de Pinochet, ocorrido em setembro de 1973. Afinal, o PCC foi o único integrante da Unidade Popular (UP), coalizão esquerdista que governou o Chile entre 1970-73, que apostou todas as suas fichas na “via pacífica” e se recusou a se preparar para enfrentar a ameaça golpista. Com Pinochet no poder, os comunistas chilenos iriam finalmente aceitar o caminho da luta armada.

A novidade na oferta de Fidel ao PC chileno é que, até aquele momento, o regime cubano tinha treinado milhares de militantes esquerdistas latino-americanos em escolas de guerrilha, mas jamais oferecera a eles uma formação militar profissional. “Foi um gesto absolutamente inédito; já não se tratava de formar especialistas em sabotagens nem em atentados, mas era a audácia de criar um exército paralelo em outro país”, afirmou um ex-dirigente comunista. Esses “muchachos de Fidel” chilenos tiveram seu batismo de fogo em 1978/79 na Nicarágua, ajudando os sandinistas a derrubar a ditadura de Anastasio Somoza. A experiência estreitou ainda mais os laços desses chilenos com Havana. Com isso, a direção política do PCC foi perdendo o controle sobre eles, que se sentiam mais ligados ao regime cubano e a Fidel do que aos comunistas chilenos.

Vida própria – Ingressados no Chile a partir de 1983 com apoio logístico cubano, os comandantes da FPMR agiram com liberdade de ação completa. Pouco familiarizada com táticas guerrilheiras, a direção comunista chilena entregou a eles o controle do aparato militar. Além disso, os comandantes militares tinham seu próprio contato com Havana, que também lhes provia diretamente de fundos. Em 1987, quando o partido decidiu reintegrar-se à ação política institucional e abandonar a luta armada, ocorreu um racha: liderada pelo “comandante Salvador”, a linha militarista fundou a FPMR-Autônoma para continuar as ações armadas, mesmo depois da volta da democracia. Cada vez mais isolada, a organização transformou-se, como o MIR, numa escola de “bandidagem revolucionária”. Seus últimos atos foram o assassinato do senador Guzmán (1991), o sequestro de Cristián Edwards, filho do proprietário do El Mercurio (1991), e o resgate espetacular, em 1996, de três membros condenados pela morte de Guzmán, entre eles o próprio Mauricio Hernández Norambuena, que participou do atentado a Pinochet e liderou o sequestro de Washington Olivetto.