Bruxa por bruxa, o Brasil também tem as suas. Seres do outro mundo é o que não falta por aqui. No livro Geografia dos mitos brasileiros, o folclorista Câmara Cascudo apresenta mais de 100 assombrações. Do saci ao lobisomem, do curupira à mula-sem-cabeça, o batalhão de lendários personagens ainda encontra brechas para tentar resistir às entidades malignas que vêm de fora. Se a aproximação do Halloween anuncia imediato crescimento nas vendas de fantasias como chapéus de bruxa, vassouras de piaçaba, próteses dentárias com longos caninos, lençóis brancos com furos para os olhos e máscaras de Frankenstein, há quem tente transformar o dia 31 de outubro em uma ode à cultura nacional. Na cidade de São Luiz do Paraitinga, município a 186 quilômetros de São Paulo conhecido por preservar diferentes aspectos da tradicional arte do interior paulista, a noite de sexta-feira será festejada com o “Raloim caipira”, versão regional para a festa americana. Os principais restaurantes da cidade se uniram para servir o mesmo cardápio ecumênico: abóbora com carne seca. Assim, em vez de desperdiçar moranga cavando nela olhos e boca, todos poderão se fartar com um prato típico da nossa terra.

A iniciativa partiu de um grupo de entusiastas da cultura popular preocupado com o resgate da mitologia brasileira. Denominada de Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci), a turma promete envolver a criançada com gincanas relacionadas ao lendário personagem. O barrete vermelho para ser usado na cabeça e camisetas com a divertida imagem de um saci jantando uma abóbora estarão à venda. Brincadeiras como corrida de uma perna só e campeonato de assobio devem ocupar as tardes de sexta e sábado. “Deveríamos aprender com os Estados Unidos estratégias para divulgar nossa cultura. As mesmas pessoas que repudiam as guerras no Iraque e reclamam da política econômica praticada pelos Estados Unidos divertem-se com as festas de Halloween. Poucos percebem que esse imperialismo é também cultural”, comenta o violeiro Ivan Vilela, residente em Campinas e membro fundador da entidade. “Montamos a associação com a idéia de contribuir para o resgate dos nossos mitos. Elegemos o saci como ícone. Além de ser o mais famoso deles, ele é muito parecido com o Brasil por ter uma perna só: tem tudo para chegar lá, mas não chega”, compara. Ao lado de outros militantes de peso da cultura popular, como os jornalistas Jô Amado e Vladimir Sacchetta, Vilela defende a adoção de 31 de outubro como o Dia do Saci e conclama pais e professores a contar histórias brasileiras para as crianças. “São mitos de tradição oral. Se pararmos de narrá-los, certamente desaparecerão”, afirma.

Como muitas das tradições incorporadas à cultura brasileira, o Halloween tem sua origem em rituais celtas realizados no norte da Europa há mais de dois mil anos. Mas, enquanto as fogueiras do mês de junho e as folias de fim de ano – duas práticas celtas – foram incorporadas pelos portugueses antes de chegar ao Brasil, o Halloween permaneceu restrito à cultura anglo-saxônica. Para os celtas, o dia 1º de novembro simbolizava o final do verão e das colheitas, seguido por um longo período de dias frios e sem sol. Era época de estocar alimento e recolher os animais. Acreditava-se que, no dia 31 de outubro, à meia-noite, os espíritos dos mortos voltavam para a Terra e poderiam causar prejuízos nas plantações e outros danos. Para amenizar os estragos, os celtas estabeleciam contato com seus ancestrais e prestavam homenagem aos mortos. Com o tempo, a festa pagã
foi incorporada pela Igreja Católica: o 1º de novembro virou o Dia de Todos os Santos e o dia 2, Finados. A bruxa Tânia Gori, especialista em Halloween e autora do livro Bruxaria natural, explica que a festa ficou restrita à região da Irlanda durante séculos e só se popularizou nos Estados Unidos. “Isso ocorreu por volta de 1840, quando imigrantes irlandeses levaram a tradição para a América”, conta. “Foi lá que a brincadeira do trick or treat (travessuras ou gostosuras) teve início:
as pessoas deixavam doces nas portas das casas para afastar os fantasmas de seus lares”, diz.

Por aqui, o Halloween começou a ser celebrado, de maneira discreta, há 20 anos, trazido por escolas de idioma inglês. Mas foi só na última década que
a festa do dia das bruxas passou a ser comemorada em larga escala nas ruas, em danceterias e colégios. A Skill, rede de curso de inglês com 320 unidades
em 21 Estados brasileiros, promove um Halloween para americano nenhum botar defeito. Nessa época, todas as salas
de aula são decoradas com bruxas e vampiros, os alunos aprendem a origem da festa e participam de concursos de fantasias. Este ano, em São Paulo, a escola fechou parceria com a casa noturna Blood (sangue em inglês) e vai organizar uma festa para cinco mil pessoas no dia 31. “Procuramos ensinar a
língua mostrando a cultura do país”, justifica Lauro Xavier, diretor pedagógico da rede. “Nossa intenção não é substituir a cultura
brasileira. Pelo contrário, é muito ufanismo da nossa parte achar
que o Halloween pode anular festas nacionais, como a junina e o Carnaval, por exemplo”, acredita.

Mas nas ruas a sensação é outra. Colégios, bilíngues ou não, e
academias de ginástica de todo o Brasil, inclusive de Estados como
Bahia e Paraná, já aderiram à moda. A escola bilíngue Tempo Mágico,
na Tijuca, Rio de Janeiro, parte para seu sétimo Halloween. No início, imaginaram uma festa folclórica para os alunos de quatro a seis anos. Mas até as crianças do berçário e do maternal acabaram tomando
parte na festa, o que faz com que na comemoração haja bruxinhos
de apenas cinco meses. A academia Jump, em São Paulo, tem até um HidroHalloween – aula de hidroginástica com os professores fantasiados.
E as casas noturnas, é claro, não ficam fora. No dia 31, inúmeras boates de São Paulo (incluindo Klass, Griffe e The Bar) celebrarão o dia das bruxas: quem não estiver vestido a caráter não entra.

Com tanta comemoração, não é de espantar que a demanda por fantasias tenha se multiplicado. Só na Sulamericana, uma das maiores distribuidoras de costumes para festa em todo o Brasil, a venda de artigos para o dia das bruxas tem crescido ao impressionante ritmo de 30% ao ano. Só para 2003 foram produzidas cerca de 100 mil peças, entre roupas e acessórios (perucas, chapéus). Em Curitiba, a Mansão das Fantasias, loja que aluga roupas para festas, aumentou, em torno de 15% o número de locações nessa época em relação a 2002. Na ladeira Porto Geral, em São Paulo – famosa rua com diversas lojas de fantasias – a decoração é toda de Halloween. A loja Festas e Fantasias gastou R$ 25 mil para montar a vitrine de 50 metros e contratar atores que posam de bruxa e Freddy Krueger. “Começamos a vender artigos da festa há sete anos. Hoje, para nós, o Halloween é uma data comercial tão importante quanto o Carnaval”, explica Pierre Sfeir, proprietário da loja. “Decoramos tudo com motivos de terror em agosto e só desmontamos em novembro, quando trocamos pela decoração de Natal”, finaliza. Lá, a esteticista Fabiana Olivério gastou mais de R$ 150 em enfeites de bruxa, teia de aranha e caveiras. Tudo para decorar a festa de aniversário de sua irmã Mariana, dez anos. “Ela pediu para eu comprar coisas bem assustadoras. Vai ser um baile à fantasia cheio de terror”, comenta. Os amigos Anderson de Oliveira e Régia Ramos, ambos estudantes de enfermagem, divertiram-se escolhendo os trajes para a festa de Halloween da universidade. Ela optou por um de bruxa, ele experimentou a do fantasma do filme Pânico e se entusiasmou: “Todo brasileiro tem vontade de imitar americano”, disse. Se isso é algo bom? “Lógico!”, disparou. Resta saber se, um dia, o Tio Sam vai se dispor a pular fogueira e subir no pau-de-sebo.