Imagine um homem de inteligência sedimentada em patamares estelares. E imagine este mesmo homem, autor de uma teoria revolucionária, elaborada para a compreensão das mais complexas questões econômicas, vivendo durante 25 anos numa situação que ele próprio chama de “estado ilusório”, expressão usada para definir um doloroso processo de esquizofrenia. Este homem chama-se John Forbes Nash, Jr., atualmente com 73 anos, matemático que entrou para a história da universidade americana de Princeton e se transformou em lenda viva no meio acadêmico dos Estados Unidos não só pelos feitos envolvendo a ciência dos números como pelo comportamento que o colocou à margem de uma provinciana sociedade dos anos 50. Inteiramente afetado pela doença cruel, Nash enfrentou toda a sorte de desafios na vida profissional e pessoal até ficar parcialmente curado, ganhar o Prêmio Nobel de Economia de 1994 e ser definitivamente reconhecido como gênio. Sua biografia chega agora às telas glamourizada por Hollywood – que aplicou toques de ficção –, mas nem por isso menos sofrida no filme Uma mente brilhante (A beautiful mind, Estados Unidos, 2001), que tem estréia nacional na sexta-feira 15.

Vencedor de quatro Globo de Ouro por melhor filme (drama), melhor ator (drama), melhor atriz coadjuvante (drama) e melhor roteiro, e forte indicado e concorrente ao Oscar nas principais categorias – as indicações serão anunciadas na terça-feira 12 –, Uma mente brilhante vem provocando polêmica entre os acadêmicos americanos. Muitos acham que o longa-metragem dirigido por Ron Howard, de Cocoon e Apollo 13 – do desastre ao triunfo, e roteirizado por Akiva Goldsman, acobertou com liberdades artísticas a realidade descrita no livro homônimo, assinado pela jornalista Sylvia Nasar, que, segundo alguns, de certa forma já mascarava os fatos. Para o público em geral, talvez pouco importe a guinada “semificcional”, conforme descrição de Goldsman. Desde sua estréia no Natal de 2001, a fita fez uma bilheteria de US$ 93 milhões. Está certo que o número não é assim tão expressivo se comparado a blockbusters como Harry Potter e a pedra filosofal, que até a semana passada havia faturado US$ 312 milhões apenas nos Estados Unidos. Mas, em se tratando de um filme de assunto árido, sem efeitos especiais mirabolantes, é um bom feito.

Para Howard houve muita criatividade. “Nossa abordagem foi a mais fiel possível. Tentamos deixar que a autenticidade fosse nosso guia”, justifica ele. Descontado o papo de diretor, ele soube contar uma boa história. Howard perscruta as alterações psicológicas do personagem e, com estilo quase linear, sabe ludibriar o espectador, fazendo-o entrar na confusão mental de Nash, que cria situações tão estapafúrdias a ponto de realmente acreditar nelas. É o jeito de o esquizofrênico enxergar o mundo. Mas o grande mérito de Uma mente brilhante, sem dúvida, pertence ao neozelandês Russell Crowe, um ator que, aos 37 anos, já tem respaldo suficiente para a empáfia e a arrogância que o cerca. Desde O informante e Gladiador, Crowe vem mostrando o porquê de sua meticulosidade em criar os mais diferentes papéis e fazer o público distingui-los não apenas pela caracterização, mas principalmente pelo tom exato dado a cada um deles. Interpretar um esquizofrênico é andar na linha tênue do ridículo, se não quiser parecer estereotipado. Com Crowe, o olhar, os gestos, o nervosismo diante das obrigações de enfrentar o mundo e o meio social em que vive foram muito bem incorporados. E nem precisou pirar para compreender aquele
universo tão peculiar.

Palavrões – Em nenhum momento, como revelou em recente entrevista à revista americana Entertainment Weekly, ele visitou hospitais psiquiátricos nem conviveu de perto com um punhado de gente com os mesmos distúrbios mentais de seu personagem. “Eu não gosto da idéia de ficar cutucando as pessoas. Há muitas outras maneiras de obter informações sem invadir a privacidade delas”, disse o ator, que não mede os palavrões para agredir quem tenta apenas saber um pouco de sua vida fora das telas. Durante a empreitada comandada por Howard ele nem sequer grudou no verdadeiro Nash, como seria de hábito. Só fez algumas perguntas específicas através de vídeos. Eventualmente o encontrou no set das filmagens, que duraram três meses. Numa destas ocasiões perguntou se Nash queria café ou chá. O matemático demorou 15 minutos para responder. De posse deste traço da personalidade do gênio que usava tênis All Star numa universidade cheia de formalidade, Crowe construiu uma sequência de cenas nas quais seu personagem disserta sobre a densidade de sabores de chá, sem saber qual escolher. Detalhista, também deixou crescer as unhas das mãos com o intuito de aparentar seus dedos tão longos e finos como os do verdadeiro Nash, um nerd que criava logarítmos para definir o caminho dos pombos e era extremamente desajeitado com as mulheres de quem só interessava “uma troca de fluidos”.

No livro de Sylvia Nasar há especulações sobre sua suposta bissexualidade. Howard ignorou. Ou melhor, atenuou, e bastante. Só há uma cena em que ele troca olhares nada involuntários com um jovem bonito. A discrição no assunto caiu bem. Afinal, não é o mote principal. Preferiu valorizar a importância – ainda que com muitas pinceladas de ficção – de sua mulher, Alicia, interpretada por Jennifer Connelly, que finalmente encontrou um papel à altura de sua beleza e de sua vontade de se transformar numa boa atriz. Na fita, Alicia é uma cúmplice quase tão sofrida quanto Nash. Em seu processo de loucura, sem contar a ninguém, o matemático tenta decifrar códigos secretos através de recortes de revistas que o levarão a desmontar um suposto ataque soviético. Ele é incentivado por um tal de William Parcher (Ed Harris), figura empenhada em provar que a guerra fria vai ficar quentíssima. Para cooptá-lo, Parcher apela à vaidade de Nash, um ser que rabisca equações sem fim nas janelas e é capaz de sangrar a cabeça no vidro porque se diz incapaz de errar.

Ironia – Harris empresta ao papel a ironia e o desleixo pelo ser humano dos agentes à época dedicados ao combate ao terror antropofágico do comunismo. Diante da situação, o matemático aumenta a convulsão psicológica quando entra em cena Dr. Rosen, interpretado por um envelhecido e ainda nobre Christopher Plummer. Fãs de A noviça rebelde, no qual ele faz o Capitão Von Trapp, ficarão abismados. Dr. Rosen é o contraponto ao misterioso Parcher, que acompanhará Nash até ele envelhecer com Alicia, num meticuloso processo de maquiagem que deixou Crowe e Jennifer quase irreconhecíveis na cerimônia do Prêmio Nobel. Neste momento, desprovido da intenção de coroar sua atuação no filme – o que poderia ter feito, já que a cena é própria para inundar o cinema de lágrimas –, o ator remete a uma involuntária premonição da juventude. Aos 16 anos, ele montou na Austrália, onde cresceu, uma banda de rockabilly chamada Russ Le Roq, cujo single era I just wanna be like Marlon Brando (Eu só quero ser como Marlon Brando). Depois de 21 anos, Russell Crowe está quase conseguindo.