Matéria publicada nesta revista em outubro sob o título "Grandes antes da hora" discorria sobre a "agenda" de crianças com menos de dois anos, já divididas entre aulas de inglês, teatro e música, isso tudo "para auxiliar o desenvolvimento". Profissionais especializados como psicanalistas, psicólogos e psiquiatras ouvidos pela reportagem alertavam para o perigo que tal precocidade pode trazer à infância e para o evidente fato de que, nessa idade, quanto mais espontâneas as atividades, melhor.

Certo é que há hoje um sem-número de ofertas de serviços e cursos destinados a crianças pequenas, algo que já se configura como uma tendência e, por conseguinte, um crescente mercado em que, certamente, nem todos os profissionais devem ter a formação e experiência devidas para tratar com matéria tão literalmente delicada. Admitindo que o buraco é ainda mais embaixo, me pergunto: o que leva pais a gesto tão notoriamente absurdo? Ausência – e então as atividades seriam uma forma de compensá-la? Uma ansiosa expectativa de competitividade na vida adulta do filho? Transferência de suas próprias aspirações e desejos? Imaturidade? Ou a boa e velha loucura que assola o mundo neste novo século? Fico com a última alternativa.

Não é de hoje que noto pais e mães ansiosos com o lugar dos filhos no mercado de trabalho (?). Lembro de, numa reunião à qual fui certa vez em uma escola mais conservadora onde meus filhos não viriam a estudar, ter visto um pai pedir a palavra e perguntar à coordenadora, em alto e bom som: "O que a escola faz para preparar as crianças para o mercado de trabalho?". Um silêncio desconcertante tomou conta da sala, e, jeitosamente, a moça tentou explicar àquele apressado sujeito que escolas fundamentais não têm essa função, que são responsáveis por um ensino mais elementar, etc. Detalhe: as crianças em questão eram pirralhos de seis anos de idade prestes a entrar para o primeiro ano do ensino fundamental.

O torto questionamento desse pai, infelizmente, deixa claro que esse é um pensamento mais comum do que a nossa vã filosofia pode imaginar, e a existência de escolinhas destinadas a ensinar inglês a crianças de seis meses atesta isso (como diz a canção, "quando acabar o maluco sou eu!"). Assim, deixa-se de lado o que de mais precioso a infância pode ter, a própria infância – a fantasia, o lúdico e a ignorância (se é que me faço entender) dando lugar ao compromisso, ao desempenho, à obrigação, atributos do mundo adulto. Diz a matéria que as escolinhas em questão "associam o aprendizado a recursos lúdicos". Quando me vejo em dúvida sobre o sentido das palavras, como agora, recorro ao dicionário. Diz o Houaiss sobre lúdico – "que se faz por gosto, sem outro objetivo que o próprio prazer de fazê-lo; atividade que vise mais ao divertimento que a qualquer outro objetivo".

Curiosamente, o mesmo dicionário explica a origem latina do vocábulo infância: "Dificuldade ou incapacidade de falar; mudez". Não deixa de ser irônico pensar em crianças em sua primeira idade, a idade da mudez, estudando um idioma que nem seu é.

Diante disso, não há como não perguntar: para que serve mesmo a infância? De minha parte, prefiro um mundo povoado por cidadãos monolíngües, mas com repertório afetivo e lúdico, que por profissionais competitivos, poliglotas e sem alma.

Zeca Baleiro é cantor é compositor