No momento em que a escola de samba São Clemente entrar na Marquês de Sapucaí na noite do domingo 10, vai começar mais uma superprodução do Carnaval carioca. O Sambódromo vai estrear uma iluminação suntuosa e as escolas de samba vão levar ao extremo a comercialização que evolui desde os anos 90. Só quatro das 14 agremiações não têm enredos patrocinados. Elas transpõem para a avenida concorrências antes restritas ao mundo dos negócios e da política. O tradicional Salgueiro homenageará o comandante Rolim Amaro, da TAM, e a Beija-Flor exaltará Rubem Berta, da Varig. A Grande Rio cantará o Maranhão da candidata Roseana Sarney, enquanto a Imperatriz Leopoldinense vai apresentar as belezas de Campos, cidade natal do também governador-presidenciável Anthony Garotinho. Decepcionados com o mercantilismo que atravessa o samba da Sapucaí, os admiradores do “maior espetáculo da terra” correm para o velho Carnaval de rua. “As escolas viraram uma prisão para os compositores. A saída são os blocos, onde há espaço para a criatividade”, afirma o compositor Noca, 69 anos, que há meio século defende a Portela. Não é o único a abandonar as milionárias agremiações. A cada ano cresce o número de foliões que foge do Carnaval S.A. rumo aos blocos, a febre do momento. Desfilando antes ou durante a festa, são as principais atrações para os dissidentes do samba-show.

O maior destaque do Carnaval de rua no Rio de Janeiro tem sido o Monobloco. Seus ensaios, no Jardim Botânico (zona sul), começaram em 4 de janeiro entupindo de jovens o Clube Condomínio, no mesmo bairro. O bloco, que enche as ruas e deixa toda a zona sul engarrafada, não se apresentará nos dias oficiais do Carnaval. O último desfile é neste domingo 3. O Monobloco nasceu da paixão do músico Pedro Luís e sua banda A Parede por sambas-enredo. Virou ponto de encontro da juventude bonita e bronzeada da zona sul carioca mesclando letras e ritmos de coco, rock, funk e samba. Os desfiles chegaram a ter sete mil pessoas. “Misturamos o instrumental da escola de samba com outros ritmos”, comenta Pedro Luís, no comando de 130 ritmistas. Eles tocam Tim Maia e Raul Seixas em ritmo de baticumbum, além de músicas de carnavais passados. A ala da bateria é uma atração à parte, pela concentração de mulheres bonitas tocando desde tamborim até o pesado surdão. “Acho ótima a mistura de sons e fico orgulhosa de ser uma das primeiras mulheres ritmistas”, comenta a morena Cynthia Howllett, uma das tantas beldades que treinam repique o ano todo para não fazer feio nas ruas.

Fugir do Carnaval-espetáculo da Marquês de Sapucaí virou moda. “Os blocos de rua crescem em progressão geométrica”, comemora Nelson Rodrigues Filho, vice-presidente da Sebastiana – a associação dos blocos nascida há dois anos para se contrapor ao gigantismo da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Nelsinho, que fundou o bloco Barbas no fim dos anos 70, organiza seu 19º desfile – o único da cidade que refresca os foliões com um carro-pipa escondido em alguma esquina de Botafogo, na zona sul. Além dele, outros 13 estão filiados à Sebastiana (leia quadro na pág. ao lado). Movidos pela proximidade do Carnaval e pela vontade de ressuscitar a folia ao estilo antigo, outros blocos vão brotando, como os recém-nascidos Aconteceu, Voltar Pra Quê, Devassos da Cardeal e Vem Ni Mim Que Eu Sou Facinha.

Para o arquiteto Paulo Saad, o Carnaval é uma data sagrada que começa dois dias antes da folia com o desfile do Escravos da Mauá, no centro do Rio, e este ano termina na madrugada da Quarta-Feira de Cinzas com um banho de mar em Copacabana promovido pelo recém-nascido Bloco Virtual. A paixão levou Paulo a fundar vários blocos, mas hoje ele concentra energias no Carmelitas, que desde 1990 desfila pelas ruas de Santa Teresa, centro. Diz a lenda que o bloco surgiu em homenagem a uma freira do Convento das Carmelitas, que costumava fugir para pular Carnaval. Até hoje o bloco ostenta a caricatura de uma freirinha vestida de hábito sambando até cair. “Estou encantado com o Rio. Sempre pensei que Carnaval carioca fosse sinônimo de Sambódromo, mas descobri que na rua está a melhor folia da cidade”, elogia o mineiro Wesley Brust, morador do Rio desde 1997. É um dos quatro mil foliões que se acabam de tanto dançar pelas ladeiras de Santa Teresa.

Penetras – O sucesso do Carnaval de rua é grande a ponto de os organizadores temerem o crescimento exagerado do público. A turma do Suvaco de Cristo ficou tão assustada com a afluência de carnavalescos de última hora, especialmente os pit-boys arruaceiros, que estimulou uma dissidência – o Bloco da Fundição – para evitar confusões. Os últimos ensaios do Suvaco no Jardim Botânico foram feitos praticamente às escondidas. O desfile está marcado para este domingo 3. Os organizadores passaram a agendar os ensaios sem divulgar datas. Neste ano, só os mais chegados é que souberam do dia, da hora e do local. O objetivo de tanta precaução é evitar os males que transformaram as escolas de samba numa multidão de penetras atravessando a avenida sem paixão.

Um dos blocos que deram origem a essa nova fase do Carnaval carioca de rua foi o Simpatia É Quase Amor, nascido em 1985 de um grupo de amigos que se reuniam em um bar de Ipanema. O nome foi inspirado no personagem de um conto de Aldir Blanc, e o dinheiro necessário para o desfile foi obtido da venda de camisetas – expediente usado até hoje. O bloco inferniza o trânsito de Ipanema no sábado anterior ao Carnaval e no domingo de Momo, num trajeto feito quase todo em frente à praia, na avenida Vieira Souto. “O tamanho do público mostra que o carioca gosta do Carnaval de rua”, diz o médico Ari Miranda, 50 anos, organizador do Simpatia. “Não foi à toa que surgiram mais de 15 blocos nos últimos anos.” Os ensaios a cada ano estão mais cheios e os desfiles arrastam multidões. “Aqui a gente fica à vontade, brinca sem gastar dinheiro. É o verdadeiro espírito do Carnaval”, elogia a advogada Maria Aparecida Melo.

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A busca das origens

Hélio Contreiras

No fim da tarde de 20 de janeiro, a meio quilômetro da praça do Russel, onde cardeais e bispos do Rio celebravam o dia do padroeiro São Sebastião, centenas de foliões se espremiam no Teatro Rival, uma casa de resistência cultural no Centro do Rio dirigida pela atriz Ângela Leal, na tentativa de reviver os tempos românticos do Carnaval. Era a estréia da Sebastiana, a associação de blocos do centro e da zona sul que admite penetras dos subúrbios e da zona norte. Criada no ano passado, a Sebastiana é a expressão mais sintomática da febre que toma conta dos foliões cansados do gigantismo, da sofisticação e dos turistas do Sambódromo. Sem nudez, efeitos especiais ou sambas comerciais, o teatro Rival virou um túnel do tempo para a passagem do Sebastiana.

Sem as poltronas, o teatro se transforma em clube. Na pista, a paquera corre solta e a cerveja ajuda a explicar as barriguinhas em profusão misturadas aos corpos malhados de uma juventude saudosa do tempo que não conheceu. No palco, vozes muitas vezes desafinadas entoam os sambas críticos dos blocos debochados. De vez em quando, para alívio dos tímpanos mais exigentes, os puxadores improvisados pelos blocos cedem o microfone a sambistas consagrados, como Walter Alfaiate. Não faltam nem as máscaras e fantasias irreverentes dos tempos de Aurora e Amélia.

É uma viagem aos anos 20 e 30, tempo em que compositores como Lamartine Babo, Ary Barroso e Mário Lago lançavam músicas para a eternidade batucando em caixas de fósforos nas proximidades do Rival. “Não queremos estimular o saudosismo, mas restabelecer as origens do Carnaval”, diz o sambista Paulo Saad, fundador da associação. “Sebastiana é um projeto para recuperar as origens do Carnaval, com a valorização do papel dos blocos”, diz Walter Alfaiate.


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