O meio-dia o sol é tão quente que a impressão é que tudo à volta treme. Os pés afundam na areia fina que queima como brasa. O mar fica na porta de casa, assim como os barcos. Em contraste com as dunas gigantes, o manguezal vira floresta. Coqueiros, cachorros magros, cabras desnutridas e crianças descalças completam a paisagem. Esse é o cenário real da Ilha dos Lençóis, comunidade encravada no litoral do Maranhão, onde lendas e assombrações são contadas pela comunidade de pescadores e descendentes de albinos, certa de que vive numa terra encantada.

A ilha, que fica a mais de sete horas de barco do município de Cururupu, tem 103 casas, todas feitas de palha de babaçu. A mitológica região, onde vivem 300 pescadores semi-analfabetos, num passado não muito distante registrava grande incidência de albinos. Isso ajudou no enredo fantástico traçado por aquela gente que faz do mar a principal fonte de sobrevivência. A vida na ilha segue o ritmo da maré e obedece a um ritual invariável: os homens pescam e as mulheres cavam poços nos pés das dunas para abastecer as casas com água doce. Depois se embrenham nos mangues para catar galhos secos e transformá-los em lenha para cozinhar o peixe. Na comunidade não existe escola – as crianças estudam até a quarta série em barracões improvisados. A ilha pertence ao Arquipélago de Maiaú, um dos mais atrasados da costa brasileira. Localizado a 160 quilômetros a oeste de São Luís, não há médicos e outra forma de subsistência a não ser a pesca.

Albinos – Da legião de albinos que povoava a ilha na década de 80, sobraram poucos para contar a história fantástica do rei menino. Muitos morreram de câncer de pele e outros foram embora para cidades vizinhas com medo do mesmo destino. Os albinos que ficaram mantêm a tradição: são chamados de Filhos da Lua, não pela poesia que o apelido sugere, mas pela necessidade que têm de pescar à noite para se proteger do sol. Na comunidade, albinos e não-albinos dão vida às lendas do lugar, implantadas no País pelos jesuítas no século XVII. Os pescadores contam que na ilha existe um reino – um palácio feito de ouro, cristais e diamantes – há muito tempo escondido nas profundezas das águas da Praia dos Lençóis. A ilha e o reino, segundo eles, têm dono. Ambos pertencem a dom Sebastião – o rei menino de Portugal, que foi coroado aos três anos de idade e desapareceu aos 24 na Batalha de Alcacér-Quibir, contra os mouros, na África, por volta do século XVII. Os pescadores acreditam que, depois da derrota, dom Sebastião atravessou o oceano e veio se refugiar na Ilha dos Lençóis onde tornou-se encantado, assim como suas riquezas.

No imaginário dos pescadores, o rei nunca mais deixou a ilha. Vive lá vigiando seu palácio e protegendo os habitantes. Nas noites de lua cheia um touro preto coroado e com uma estrela na testa passeia pelas dunas, soltando fogo pelas ventas. É dom Sebastião querendo pôr fim ao encanto. O rei também aparece em forma de gente, vestido de cavaleiro e montado em um cavalo branco.

“Nessa ilha mora um rei e o nome dele é dom Sebastião”, garante o pescador albino Manoel de Oliveira, 67 anos, mais conhecido como Macieira, nascido e criado em Lençóis. “Aqui tambores tocam no fundo da terra e eu já ouvi muitas vezes isso acontecer”, afirma. Pai de nove filhos e avô de 25 netos, dois deles também albinos, Macieira tenta a todo custo encontrar-se com o rei. “Nas noites de lua cheia, subo as dunas na esperança de vê-lo. Minha curiosidade é saber como ele é: se é branco, preto ou albino como eu. Meus avós viram muitas vezes o touro passeando nas dunas e me disseram que essa ilha é dele e eu acredito nisso.” Apesar de acreditar que mora num paraíso encantado, Macieira reivindica mais atenção: “O povo aqui é esquecido de medicina e educação. Temos um posto de saúde, mas não temos médico e a escola das crianças é um barracão.” Por causa do sol, já teve dois cânceres, um na perna e outro na orelha. “Não gostaria que o mesmo acontecesse com os meus netos, Robert e Ronald, que nasceram albinos como eu.” Sobre a viabilidade de um dia o rei vir a desencantar Macieira, é categórico: “Não vai ser nada bom. Já diziam os meus antepassados que se isso acontecer a ilha vira cidade e São Luís desaparece nas profundezas do mar.”

Sonhos – “Rei, rei, rei Sebastião, quem desencantar Lençóis vai abaixo o Maranhão.” Essa é a cantiga que não sai da boca da viúva Telma Maria Silva, 35 anos. Ela é outra que diz que já perdeu a conta das vezes em que viu o rei. “Sonho com ele sempre. Ele é moreno, tem olhos azuis e usa um boné vermelho na cabeça”, descreve Telma, que ganha R$ 15 por mês carregando água para abastecer uma das duas pousadas do local. Telma já teve 12 filhos, todos albinos. “Dez morreram, um deles com seis meses”, lembra, dizendo que apenas dois sobreviveram, entre eles Cleber, cinco anos. O pai- de-santo José Mário de Araújo, 64 anos, é mais um que confirma o passeio do rei menino em forma de boi pelas dunas da ilha: “Eu já vi o touro em plena luz do dia.” Uma vez por semana, José Mário conta que sonha com o rei e o descreve como Telma, só que, em vez de um boné, ele usa uma veste branca. Neuza Miranda, 76 anos, a dona Nini, reforça a tese de que o encanto passa de pai para filho: “Meus pais cansaram de ver o touro. De minha parte, já ouvi cavalos rinchando, sendo que aqui não existe nenhum cavalo.”

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Maria Isabel de Araújo Ferreira, 43 anos, é líder comunitária e diz que faz questão de contar para os filhos histórias e lendas do lugar. “Até bem pouco tempo atrás, era comum a gente encontrar na praia brincos de pérola, correntes de ouro, pulseiras, xícaras de porcelana e até potes de cerâmica, vindos não se sabe de onde”, afirma Isabel. Tiago, filho de Isabel, tem 17 anos, estudou até a quarta série. Pescador como o pai, Tiago gosta das histórias. “Sou filho de uma ilha encantada. Adoro este lugar”, afirma.

Antes que os aventureiros lancem mão, os moradores advertem: dom Sebastião é ciumento e nada pode ser levado da ilha sem a sua permissão. Quem desobedece se arrepende amargamente. Casos ilustrando o apego do rei pelas coisas do lugar não faltam. Recentemente, um gerente de um mercado de Cururupu esteve na ilha e encontrou três búzios dourados. Levou para casa e foi o suficiente para perder o sono e o sossego. “Ele ficou sem dormir durante uma semana, ouvindo vozes ordenando que devolvesse os búzios o quanto antes. Devolveu e voltou a ter paz”, contou

Macieira.


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