Apontado pela Polícia Federal e pela Divisão Antinarcóticos do Paraguai (Dinar) como o principal traficante da fronteira do Brasil com o Paraguai, Carlos Cabral, conhecido como “Líder”, 30 anos, é um homem desesperado. Sucessor do sexagenário João Morel – o poderoso chefão paraguaio que comandava o tráfico da região até ser morto no ano passado, em um presídio de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, por ordem do traficante carioca Fernandinho Beira-Mar –, Cabral sabe que seu império começou a desmoronar. Isso ficou claro na noite de 8 de janeiro, quando recebeu um telefonema da Dinar em Pedro Juan Caballero, município paraguaio que faz divisa com o Brasil. Policiais recomendavam a Cabral que reduzisse sua segurança e retirasse os fuzis AR-15 e as metralhadoras de sua fortaleza, localizada a um quilômetro do centro de Capitán Bado, um pequeno vilarejo na Província de Amambay, também na fronteira. No dia seguinte, alertavam os policiais, haveria uma blitz da Dinar sob a coordenação da promotora Terezinha Paredes. Com a confiança de quem tem policiais em sua folha de pagamento, o traficante não duvidou da recomendação. Acompanhado por apenas quatro seguranças, aguardou a batida. A visita se confirmou no dia seguinte, mas os agentes da Dinar não vieram sozinhos.

Cabral tomava tererê (erva-mate do Paraguai) com amigos quando viu o portão de sua casa ser perfurado por tiros. Sob o comando do líder do Primeiro Comando da Capital (PCC), Douglas Ribeiro Cunha, um fugitivo do Presídio de Ribeirão Preto que se transformou no atual homem forte de Beira-Mar na fronteira, 20 homens encapuzados invadiram a fortaleza do “Líder”. Armado com granadas, fuzis AR-15 e M-16 e metralhadoras Uzzi, o esquadrão de Douglas arrombou os portões da casa de Cabral enquanto os agentes da Dinar Carlos Pereira e Ricardo Diaz agiam pelas portas dos fundos, matando os seguranças. Um terceiro agente, Francisco Resquim, dava retaguarda numa Toyota do lado de fora. Em lugar de uma blitz, houve um massacre. Com o apoio logístico dos agentes da Dinar, os traficantes lançaram granadas em direção aos capangas de Cabral. Seu filho, Leonardo, de três anos, foi morto com um tiro de fuzil. Pulando um muro lateral, “Líder” escapou do tiroteio. Foi apenas um lance da mais sangrenta guerra na disputa pelo tráfico que se tem notícia na fronteira do Brasil com o Paraguai. Um ataque de 15 minutos deixou 11 mortos. E nos últimos 30 dias, foram mais 21 assassinatos.

“Foi uma cilada que contou com a participação da alta cúpula da Dinar, que estava do meu lado e se vendeu para o outro grupo de traficantes”, afirmou o Cabral a ISTOÉ. O preço: US$ 650 mil. “O dinheiro foi entregue por Ramon Duret, o Casimiro, homem de confiança de Douglas, na sede da Dinar em Pedro Juan Caballero”, detalha. Procurados por ISTOÉ, os três agentes acusados por Cabral negam participação. “Nem estava em Capitán Bado naquele dia”, diz Resquim. Traficante confesso, Cabral afirma não ter mais forças para enfrentar os bandidos do PCC e os traficantes do Rio, que começaram a atravessar a fronteira em 1998, levados por Beira-Mar. Segundo ele, o Paraguai é o paraíso para quem quer planejar crimes como sequestros e assaltos a bancos sem ser incomodado. “O que mais atrai os bandidos brasileiros não é a maconha, que não vale nada para eles, mas poder viver tranquilamente, subornando policiais e autoridades”, explica. “Aqui se podem comprar e levar para o Brasil fuzis, metralhadoras e todo tipo de armas. Enquanto esse paraíso estiver intocado, não adianta a PF render 30 bandidos do PCC ou da turma do Beira-Mar na fronteira. Imediatamente vão surgir outros novos 60.”, conclui.

Para receber ISTOÉ, “Líder” montou um grande esquema de segurança. Os repórteres foram levados à fazenda onde Cabral se esconde com os olhos vendados. Em mais de duas horas de conversa exclusiva, ele quebrou seu pacto de silêncio e revelou detalhes do submundo na fronteira mais perigosa do Brasil. Dez quilos mais magro, lembrou o ataque a sua fortaleza e a morte do filho. “Eu tentei salvá-lo, mas não houve tempo. Vou carregar essa culpa”, afirmou. Os repórteres foram a fortaleza atacada. Marcas do tiroteio estão por todo lado. Nos muros e paredes manchados de sangue, buracos de fuzil. No quintal e na varanda, crateras abertas pelas granadas.

Cabral afirma que vários foragidos brasileiros participaram da invasão. Entre eles, o assaltante “Lobinho”, recrutado na Penitenciária de Presidente Bernardes (SP), e os traficantes Valfrido Gimenezes e José Elias do Amaral, o Bagual, que, segundo ele, controla o Grupo de Operações Especiais (Goe) da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul. Além de participar do massacre, o Goe é acusado por entidades de direitos humanos de fazer execuções a mando de fazendeiros. Após a chacina, capangas do PCC interceptaram, no lado brasileiro, a ambulância que levava para o Paraguai o corpo do filho de Cabral, atendido no pronto-socorro de um hospital de Dourados (MS). “Eles queriam saber se eu ainda estava vivo para concluir o serviço”, conta.

As divergências entre Cabral e Douglas começaram em janeiro de 2001, após a execução dos irmãos Mauro e Ramon Morel, acusados por Beira-Mar de colaborar com a PF em troca da redução da pena do pai, João Morel. Ao confessar os dois assassinatos em uma entrevista ao jornal paraguaio ABC Color, Beira-Mar atribuiu ao clã de Morel a prisão de seu contador, Mário Amato Filho. A briga se acirrou depois que o jornalista do ABC Color em Pedro Juan Caballero, Cândido Figueiredo, acusou Cabral de colaborar com a PF na prisão de outro braço direito de Beira-Mar, o traficante Leomar Barbosa. “Após o pagamento de US$ 2 mil, o Cândido, que recebe propina de todos os traficantes da região, me pediu mais dinheiro. Não pude dar e ele criou essa briga entre os dois grupos”, afirma.

Para a PF, o massacre foi articulado por Douglas e por traficantes locais contrariados com a expansão de Cabral no tráfico depois da morte de Morel e da transferência de Beira-Mar da Colômbia para o Brasil, no ano passado. “Foi o Cabral quem organizou os traficantes da região para expulsar o Beira-Mar após a morte dos Morel”, diz o chefe da PF em Ponta Porã, delegado Bráulio Galone. Ele também suspeita da participação da Dinar na chacina. Para Galone, seria impossível Cabral ter sido surpreendido pelo grupo rival sem a traição de seus informantes da polícia paraguaia. “No Paraguai, a maioria dos policiais está a serviço dos traficantes. Pelo que sabemos, havia até helicóptero na operação”, afirma Galone. Sem poder contar com os colegas vizinhos, o Superintendente da PF em Mato Grosso do Sul, Wantuir Jacini, implantou um serviço de inteligência diferenciado, infiltrando agentes entre os policiais e traficantes paraguaios. A estratégia deu bons resultados. Nos últimos meses, foram presos 30 traficantes do grupo de Beira-Mar, além de apreensões recordes de drogas. Embora negue oficialmente, a PF também tem coordenado e participado diretamente das prisões de traficantes no país vizinho.

Assim como Cabral, Jacini acredita que a chegada de Beira-Mar trouxe para a região uma inédita onda de violência e rivalidade. Comandados por João Morel, os traficantes trabalhavam em regime de consórcio, repartindo os negócios. Surpreendentemente, segundo conta Cabral, foi o próprio Morel quem introduziu Beira-Mar no tráfico paraguaio. Pelos cálculos do “Líder”, ainda nesse trimestre Capitán Bado colherá uma safra de 200 toneladas de maconha. Mais da metade abastecerá as redes de distribuição do Rio de Janeiro e do interior de São Paulo, a R$ 10 o quilo. Trata-se da parte menor dos negócios de Beira-Mar. São Paulo e Rio também recebem mais de duas toneladas mensais de cocaína, por US$ 3,5 mil o quilo. Trazida da Colômbia, a droga chega em pequenos aviões nas fazendas de Ponta Porã, Laguna Caarapã e Amambay, municípios brasileiros na fronteira. Cabral pretende pedir asilo ao Chile ou à Venezuela. Para o delegado Galone, o traficante está blefando e já iniciou sua vingança. Prova disso seriam as casas de traficantes ligados a Beira-Mar, incendiadas em Pedro Juan Caballero um dia após o massacre. Mesmo que escolha partir, Cabral o fará como qualquer cidadão. O chefe do tráfico paraguaio e principal adversário de Beira-Mar na região não responde a nenhum processo no Brasil ou em seu país. A PF desconhece seu rosto e jamais conseguiu ligar as apreensões de droga a ele. No Paraguai, a situação do traficante é ainda mais tranquila. Como ele próprio diz, com dinheiro se compra tudo.

FEIRA DO CRIME ORGANIZADO

As armas expostas na vitrine de uma das dezenas de lojas de Pedro Juan Caballero não diferem muito das encontradas nas lojas brasileiras: pistolas semi-automáticas, rifles e revólveres de vários calibres. Mas basta uma conversa com o vendedor para que ele mostre as verdadeiras preciosidades da casa, escondidas numa sala secreta: granadas, metralhadoras e fuzis anti-aéreos. A ISTOÉ, o vendedor J. Gonzales ofereceu por US$ 4,5 mil um fuzil Browning belga ponto 50, com mira a laser, que tem capacidade para derrubar um avião a uma distância de 1,5 km. “Nossos clientes são quase todos brasileiros. Com dinheiro, arrumo qualquer arma”, garante Gonzalez. O comércio se estende pela avenida Solano Lopez, onde os ambulantes oferecem de tudo: armas, carteira de identidade, passaportes falsos e todo tipo de droga.

As autoridades paraguaias nunca reprimiram essa feira ilegal. Só começaram a se preocupar depois que criminosos brasileiros levaram as chacinas à região. Para piorar, parte da população local está a favor dos traficantes. Uma comissão do Congresso paraguaio, coordenada pelo senador Emílio do Cáceres, do Partido Colorado, foi a Capitán Bado para discutir com o prefeito Eduardo Grau medidas para conter a onda de violência provocada pela briga de traficantes. Os parlamentares acabaram como alvo de insultos de moradores do município. “Vocês são os verdadeiros bandidos e os chefes das quadrilhas. Apoiamos os traficantes porque eles matam nossa fome”, discursou Ossinéia Vassam, que trabalha numa plantação de maconha. “Perdemos o controle da situação. Só com a ajuda do governo federal poderemos conter o terror”, diz, alarmado, o governador da Província de Amambay, Victor Paniagua.

SOB SUSPEITA

Escoltado por agentes da Polícia Nacional depois que sua casa foi metralhada por traficantes, o correspondente do ABC Color em Pedro Juan Caballero, Cândido Figueiredo, tornou-se um mito na região. O escritório de Figueiredo, decorado com ossadas humanas encontradas na divisa com o Brasil, tornou-se referência para os políticos, traficantes e todos que querem conhecer o tráfico na fronteira. Foi para Figueiredo que Fernandinho Beira-Mar telefonou em janeiro de 2001 quando resolveu assumir os assassinatos da família Morel. O jornalista carrega um rádio conectado à central de operações da polícia paraguaia. Almoça com o governador de Amambay, Victor Paniagua, enquanto, com facilidade idêntica, fala com o comerciante Jorge Rafat, indiciado pela PF como outro chefão do tráfico paraguaio.

O jornalista reagiu com ironia às denúncias de Carlos Cabral, que o acusa de receber propina dos traficantes. Segundo Figueiredo, quem lhe contou sobre a colaboração de Cabral com a PF foi o auxiliar direto de Beira-Mar, Leomar Barbosa, preso em outubro. “Nunca recebi nenhum centavo do Cabral.” Figueiredo confirma tentativas de suborno e conta a fórmula inusitada que usou para lidar com elas. “Recebi o dinheiro e entreguei tudo a hospitais. Mas, antes, denunciei no jornal”, ressalva.