Um pai sai de sua casa, acompanhado dos filhos, para tentar cumprir o último desejo da mulher recém-falecida: ser enterrada em outra cidade, junto aos entes próximos. Só que nada parece dar certo para a família Bundren em sua trajetória Mississippi adentro, arrastando um cadáver já em franca decomposição. A chuva enche de lama as estradas e derruba as pontes que eles deveriam atravessar para terminar a insana tarefa, sempre observada pelos que os vêem passar e os enquadram dentro de um sério sintoma de comprometimento mental coletivo. É a partir deste enredo macabro, por vezes beirando o grotesco, mas principalmente carregado de simbologia, que o escritor americano William Faulkner (1897-1962) realizou Enquanto agonizo (Mandarim (226 págs., R$ 30), um de seus mais importantes trabalhos e uma de suas obras favoritas, originalmente escrita em 1930 e agora relançada com a nova tradução de Wladir Dupont.

Enquanto agonizo costuma ser citado como um dos melhores motivos para Faulkner ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura de 1949, surpreendendo os que viam o romance, em geral, como um monumento ao que de mais caipira poderia acontecer na criação literária dos Estados Unidos. Sua capacidade de traduzir em palavras os silêncios dos pobres das terras mais inóspitas do Mississippi e de transformar em eloquentes movimentos os gestos contidos de seus conterrâneos é hoje reconhecida como genial.

Os personagens de Enquanto agonizo praticamente não falam entre si ou com terceiros. Seus raros diálogos são meramente funcionais e cotidianos. Mas a história é construída a partir da narrativa na primeira pessoa dos acontecimentos vistos e sentidos por cada um deles, criando um encadeamento de passado, presente e esperanças futuras que vão acompanhando o cadáver da velha senhora sob as intempéries. Há situações que poderiam ser descritas como hilariantes, se a gargalhada não soasse francamente obscena naquelas circunstâncias. E é ao deixar o leitor constrangido, sorrindo amarelo em meio ao drama familiar, que Faulkner revela todo o seu poder literário.