Os 14 mil moradores de Itinga, no miserável Vale do Jequitinhonha (MG), viam espantados duas balsas cruzando o rio da cidade onde metade das três mil casas não tem banheiro. A bordo, equilibravam-se 30 ministros e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em sua primeira viagem, uma semana depois da posse. “Quero que olhem nos meus olhos: se Deus quiser, vamos inaugurar essa ponte”, prometeu Lula. Nos cinco meses seguintes, a palavra “Itinga” virou terror no Palácio do Planalto. Lula sempre lembrava e cobrava a promessa. Em despachos com o ministro dos Transportes, Anderson Adauto, a conversa começava com o bordão presidencial: “E a ponte de Itinga?”

Em abril de 2004 a ponte deverá ser inaugurada. Itinga deixou de
ser idéia fixa, mas virou exemplo do estilo de governar que Lula e o famoso e inexpugnável “núcleo duro” do Palácio do Planalto – formado pelos ministros José Dirceu, Antônio Palocci (Fazenda), Luiz Gushiken (Comunicação) e Luiz Dulci (Secretaria Geral) – impuseram ao governo
e goela abaixo do PT. Os compromissos e a autoridade de Lula se
impõem ao quarteto que dá voz e estilo ao governo. Mais do que isso:
é a angústia pessoal do presidente com as promessas de rua que dá urgência e pressa ao Planalto, ao movimentar o trator da Casa Civil
para aprovar reformas. “Com a caneta na mão, em nome da governabilidade que não permite debate ou demora, o Planalto nos transformou em meros votadores”, reclama o deputado federal Walter Pinheiro (PT-BA), um dos oito punidos com suspensão de 60 dias por abstenção na Reforma da Previdência.

Lula reúne o “núcleo duro” todas as segundas-feiras às 9h, em seu gabinete, no terceiro andar do Planalto. Às vezes, aparecem no gabinete outros integrantes do primeiro escalão, dependendo do assunto a ser tratado. É a reunião de coordenação política, também integrada pelo ministro do Planejamento, Guido Mantega. Num canto da mesa, quieta e atenta, sempre está a ex-deputada estadual e ex-trotskista Clara Ant, 55 anos, responsável pela ata e memória
viva de tudo que Lula ouve, fala e cobra. “O presidente tem uma
memória infernal. E, com a Clara ao lado, não escapa nada”, adverte
um assessor. “Quando necessário, Lula tecla seu telefone direto e cobra providência do ministro sem passar nem mesmo pela secretária. Ele sempre tem pressa”, avisa um ministro. E quando Lula saca, José Dirceu dispara. “Eu sou o operador. E este é um governo de decisão”, rugiu o trator do Planalto para um parlamentar aliado. Dirceu – que por ter extremo poder político já é comparado com Golbery, o lendário chefe
da Casa Civil do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) – é a fisionomia mais sizuda do núcleo, onde a expressão sorridente de Palocci, o semblante zen de Gushiken e o rosto sereno de Dulci representam as várias faces de um mesmo e duro centro de poder. “Palocci e Dirceu
são os nomes mais fortes e influentes, mas Gushiken é o único que
ousa questionar o presidente. Mas a palavra de Lula é lei para todos”, descreve um petista que já viu algumas reuniões. Do quarteto, Gushiken é o mais íntimo de Lula, que costuma chamá-lo de “China”, antigo apelido dos tempos de sindicalismo.

Para dar governabilidade ao País, o núcleo do Planalto não hesitou em atropelar seu próprio partido. No início, ouviam-se mais queixas dos chamados xiitas do PT – incomodados com a guinada centrista do governo Lula na política econômica. Mas o descontentamento já se alastrou, atingindo até petistas moderados, que aceitavam o conservadorismo na economia em nome da governabilidade. A frustração
é grande com o que vários parlamentares chamam de “falta de diálogo” dos companheiros do Planalto. A ineficácia nas áreas sociais já provoca baixas importantes entre os moderados. Foi o caso do ex-secretário de Saúde da Prefeitura de São Paulo e ex-deputado federal Eduardo Jorge, um dos petistas mais respeitados dentro e fora do partido, tanto que chegou a ser cotado para assumir o Ministério da Saúde. Há duas semanas ele filiou-se ao PV. Outro moderadíssimo que abandonou
o barco petista – causando o maior estrago na imagem do governo
entre os formadores de opinião – foi o deputado federal Fernando
Gabeira (RJ). Saiu decepcionado com a forma e o conteúdo das
ações do Planalto na área ambiental, como a MP dos Transgênicos
e a decisão de importar pneus usados. Na terça-feira 14, Gabeira despediu-se do PT com palavras cortantes, no plenário da Câmara:
“Não digo que meu sonho acabou, e sim que sonhei um sonho errado. Confiei que podíamos fazer tudo aquilo que prometíamos rapidamente, num período de quatro anos ou imediatamente. O sonho foi pior ainda.
Foi confiar que era possível transformar o Brasil a partir do Estado, quando o dinamismo se encontra na sociedade.”

Defensor de uma “crítica amorosa” dentro do PT, o deputado Patrus Ananias (MG) constata: “Houve uma inversão de papéis: o palácio formula as leis e o Congresso homologa. Precisamos debater mais antes de votar.” Uma crítica bem menos amorosa, a radical Luciana Genro (PT-RS), às portas da expulsão, reclama do presidente do partido: “José Genoíno é o braço do núcleo duro dentro do PT, que fez um giro ideológico à direita sem debate. Fez a conversão sem confissão.” Com tantos problemas internos para contornar e tantas promessas a cumprir em pouco tempo, o operário Lula vive uma angústia bem diferente da que experimentou o general João Figueiredo. O ex-presidente contava num calendário os dias que faltavam para acabar seu inesquecível mandato. Já Lula olha para a agenda e reclama: “Gente, já passaram nove meses!”

 

Festa cor-de-rosa

O presidente Lula vai comemorar seus 58 anos e o primeiro aniversário da vitória nas urnas, no dia 27 de outubro cercado de social-democratas. Ele vai abrir o XXII Congresso da Internacional Socialista (IS), que é representada, entre outros, pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair, do Partido Trabalhista, e o chanceler alemão Gerard Schröder, do Partido Social Democrata (SPD), que, assim como Blair, se inclinou para o centro, rejeitando bandeiras históricas da esquerda. O PT – que é observador da IS – já foi convidado a integrá-la, mas recusou. Agora a idéia voltou a ser debatida. O evento, que reunirá representantes de 130 países, será no Centro de Convenções do Anhembi, da Prefeitura de São Paulo, entre os dias 27 e 29. Foi providencial o adiamento para novembro da reunião do Diretório Nacional do PT, marcada para os dias 25 e 26. Os petistas acabariam atraindo holofotes internacionais para a expulsão dos quatro parlamentares que se opuseram à reforma da Previdência,
prevista para esta reunião.

Florência Costa