A filha rebelde de uma família de intelectuais judeus de Nova York se apaixona por um artista plástico da Califórnia e se muda com ele para uma comunidade de naturebas em Berkeley, berço da contestação dos anos 1970. Um belo dia ela aceita, envergonhada, o convite para trabalhar como crítica de gastronomia de um jornal de grande circulação local, escandalizando seus companheiros alternativos e partindo para uma nova vida repleta de descobertas, sabores, cores e prazeres como só a alta burguesia sabe e pode apreciar. Este é o ponto de partida da história da jornalista Ruth Reichl, que ela transformou no livro Conforte-me com maçãs – amor, aventura e os prazeres da mesa (Objetiva, 346 págs., R$ 44,90).

Se o primeiro momento é de conflitos ideológicos, o que se segue
ao longo de cada uma das deliciosas páginas é um vigoroso desfile
daquilo que de melhor a culinária conseguiu colocar a serviço (e
desfrute) do paladar da humanidade. A primeira grande descoberta
da autora, após sua alforria do milho orgânico e do arroz integral, é
a cuisine française clássica. Vale lembrar que Ruth invoca a tradição, antes que as mudanças introduzidas pelos arautos da nouvelle cuisine
lhe tirassem as gorduras, os molhos e, convenhamos, boa parte da
graça. Uma descoberta devidamente movida a paixão por um amante
que a apresenta a muitos prazeres, dentre os quais a comida e o bom vinho não são os menores.

A autora, que viria a ser uma das mais temidas críticas do jornal The Los Angeles Times, e que hoje é a todo-poderosa editora-chefe da revista americana Gourmet, da Magazine Editors, criou um estilo de narrativa. Ela mistura sua própria vida – felicidades e desgraças contadas em detalhes, sem o menor distanciamento – às sensações provocadas pelas descobertas simultâneas de toda uma geração de mestres-cucas que embalam ou exaltam suas emoções com receitas emblemáticas, descritas minuciosamente para deleite do leitor. Momentos críticos, como a disputa judicial por um bebê adotado e logo depois reivindicado pela mãe mexicana, são ilustrados de forma surpreendentemente coerente por receitas que permitem sublimar a tristeza nos vapores e sabores de um prato altamente trabalhoso.

Em geral, os americanos chamam os pratos da cozinha caseira, aqueles que acompanharam a infância de cada um, de soul food ou confort food. Para Ruth Reichl, entretanto, tudo é comida da alma e tudo o que é bom tem o dom de confortar. O grande mote de Conforte-me com maçãs é hedonista, invoca o princípio de que todo prazer vale a pena e, se o é, terá o poder de aquecer e enriquecer a alma mais empedernida. Não à toa o nome do livro toma emprestado um verso do Cântico dos cânticos que reza: “Sustente-me com passas, conforte-me com maçãs, porque desfaleço de amor.” Salomão, com certeza, sabia o que estava falando.