Quando Fidel Castro assumiu o poder em 1959, o presidente americano Dwight Eisenhower negou-se a devolver ao governo cubano a Baía de Guantánamo, ao Sul de Cuba. Os americanos que a ocupam desde a Guerra Hispano-Americana de 1898 não tinham nenhum interesse em deixar a base naval construída ali em 1903. Anos depois, nesta baía foram levantadas dezenas de prisões pelas quais já passaram haitianos. Nas últimas décadas, a baía estava encoberta por uma nuvem de marasmo, mas agora se tornou o epicentro de uma polêmica entre EUA, União Européia, ONU e defensores de direitos humanos. Guantánamo foi o destino de 158 prisioneiros da al-Qaeda e do Taleban presos pelas tropas americanas no Afeganistão. Apesar de o envio de novos prisioneiros ter sido temporariamente suspenso pelo Pentágono, ainda estão no Afeganistão 270 detentos sob custódia dos EUA.

A polêmica sobre os prisioneiros da guerra do Taleban começou depois da divulgação na imprensa inglesa de fotos dos primeiros detidos. Eles aparecem agachados, algemados, com os olhos vendados e as pernas amarradas. Suas cabeças e barbas foram raspadas, o que fere a prática da lei islâmica. Durante a viagem do Afeganistão a Cuba, alguns foram até sedados, com o argumento de que eram “perigosos e com tendência ao suicídio”. O secretário de Defesa dos EUA, Ronald Rumsfeld, chegou a dizer que a máscara usada era para não “espalhar tuberculose”. O descaso com os prisioneiros irritou o secretário das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, Jack Straw, que disse que “não importa o motivo pelo qual os prisioneiros foram detidos, eles devem ser tratados de modo humanitário”. Entre os prisioneiros alojados no chamado “Acampamento Raio-X” – por causa da semelhança com a estrutura de ossos humanos – estão três britânicos. Mas o premiê britânico, Tony Blair, contemporizou e disse que não havia nada de errado no procedimento dos americanos em Guantánamo.

Não foi o suficiente. A comissária da ONU para direitos humanos, Mary Robinson, também não gostou do que viu e exigiu uma investigação detalhada sobre o tratamento concedido aos prisioneiros. Para cumprir essa missão, foi enviada a Cuba uma equipe da Cruz Vermelha. Desautorizada a falar a respeito, a entidade entregará um relatório secreto a Washington com suas recomendações. Confinados celas abertas, improvisadas, de 1,80 m por 2,40 m, cercadas por arame farpado, os detidos stão sujeitos a chuva e vento. O governo americano nega os maus-tratos. “As condições nas quais os 158 prisioneiros são mantidos segu estritamente condutas humanitárias. Não há uma única violação dos direitos humanos”, afirmou o responsável pela guarda dos prisioneiros, coronel Terry Carrico.

Na verdade, a grande discussão torno dos detentos stá em seu status judicial. O governo americano os considera “combatentes ilegais”, enquanto a ONU e organizações de direitos humanos os classifica como “prisioneiros de gu rra” e, portanto, com direitos stabelecidos pela Convenção de Genebra de 1949. O representante da Cruz Vermelha para a América Latina, Jean-François Olivier, disse a ISTOÉ que “as autoridades que permitiram a divulgação das fotos desrespeitaram a convenção” e criticou os órgãos de imprensa que as publicaram. Mas o porta-voz da Cruz Vermelha internacional, Samuel Thomason, foi mais longe. Thomason afirmou a ISTOÉ que “pelo que se vê nos vídeos do Pentágono os prisioneiros stão claramente tendo seus direitos violados. As vendas que são colocadas em seus olhos fazem parte de uma tática conhecida para deprimir os sentidos das pessoas e, com isso, impingir um senso de isolamento. E com a manipulação psicológica do indivíduo, impondo um domínio sobre sua consciência, fica mais fácil arrancar informações durante os interrogatórios”.

Esses interrogatórios stão sendo realizados pelo FBI e CIA, sem o acompanhamento de advogados. Esta é uma das reclamações da Anistia Internacional, que fez duras críticas a Washington, enviando uma carta ao presidente George W. Bush em que exige o acesso imediato às celas de Guantánamo. Pedido até agora negado. “Apoiamos a Cruz Vermelha, mas o nosso trabalho é complementar”, disse Claudio Cordoni, diretor de pesquisa da AI. Os detentos não têm prazo para serem liberados , se forem declarados prisioneiros de gu rra, uma vez terminada a gu rra do Afeganistão, poderão ser repatriados. Mas a questão é saber quem irá definir o fim das hostilidades, já que os EUA não declararam formalmente gu rra ao Afeganistão. Bush tentará optar pelo julgamento tribunais militares, mas ainda não foi assinada uma legislação para tal. Caso os prisioneiros venham mesmo a ser julgados Guantánamo, eles não poderão recorrer aos tribunais federais dos EUA. Isso porque a base não é um território americano, mas si de concessão de Cuba.

O governo americano não divulgou nenhuma lista com os nomes dos detentos, mas países como o Reino Unido reivindicam o direito de julgar seus cidadãos em seus territórios. Os britânicos temem que os réus possam ser condenados à morte – pena que não existe na Europa. Esse pode ser o destino do americano que lutou com o Taleban, John Walker, enviado aos EUA para ser julgado. Ativistas de direitos humanos de Los Angeles, incluindo o ex-ministro da Justiça, Ramsey Clark, entraram com a primeira ação contra o governo americano. Mas o professor de relações internacionais da Universidade de Oxford Adam Roberts não acredita que haverá grande mudanças nas decisões dos EUA. “Se violações foram cometidas contra os EUA n sta gu rra, o país stá investido de autoridade para deter e julgar esses criminosos.” A Anistia Internacional defende que os EUA têm um dos melhores sistemas judiciários e por isso deveriam julgar os prisioneiros de gu rra dentro deste sistema e não em um novo tribunal.