Foram dois cabos de transmissão. Um caiu e outro, que fazia o mesmo trajeto, parou de funcionar. Imediatamente, 67 milhões de brasileiros de dez Estados, além do Distrito Federal, ficaram no escuro. Uma surpresa para o governo, segundo admitiu no dia o próprio ministro das Minas e Energia, José Jorge; um susto enorme para a população, já acuada com a explosão da violência. E uma explicação extraordinária: o apagão que aconteceu na segunda-feira 21, com o rompimento de duas linhas de transmissão entre a hidrelétrica de Ilha Solteira e a subestação de Araraquara, no Estado de São Paulo, provocando uma interrupção no fornecimento que variou de menos de dez minutos, em Brasília a mais de sete horas em algumas cidades paulistas, foi provocado por um prosaico parafuso frouxo em uma das junções que seguravam as linhas de transmissão.

Segundo a explicação oficial da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o tal parafuso acabou causando um desgaste que terminou no rompimento de um dos cabos, problema agravado com a pane no sistema de segurança. Ele deveria ter desligado apenas uma linha, mas desligou dois cabos de transmissão. Deu no que deu: o Brasil, que anda frequentando o noticiário internacional por causa da assombrosa violência, ganhou mais espaço na mídia estrangeira com a insólita história do parafuso – aliás, tão bisonha quanto à do raio que, em 11 de março de 1999, deixou 76 milhões de brasileiros no escuro. A desculpa esfarrapada do governo de que um raio teria atingido uma torre de distribuição da Companhia Energética de São Paulo (Cesp), em Bauru, não resistiu a depoimentos e documentos: o apagão de 1999 ocorreu porque o esquema não estava preparado para a sobrecarga.

O que nenhum relatório oficial certamente vai falar é que o País ficou no escuro por uma falha que teoricamente seria banal não estivesse o sistema elétrico operando no limite de sua capacidade. “O blecaute de segunda-feira mostrou mais uma vez que o sistema de energia do Brasil é vulnerável”, disse o físico Luiz Pinguelli Rosa, vice-diretor da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O Estado mais atingido foi São Paulo, com 84% da carga. Mas poucos escaparam do caos. “É o efeito Pedro Malan, que só pensa em pagar dívida”, diz Pinguelli Rosa. “A explicação correta é que não há investimento no setor.” Como a malha de distribuição da energia produzida no Brasil é interligada, a falta de investimento faz com que qualquer problema localizado tome proporções nacionais. Daí o acidente em cascata, provocando o desligamento de 13 das 18 turbinas de Itaipu, responsável por 30% do fornecimento de energia no País.

Isso não quer dizer que a culpa do apagão é da malha de interligação, considerada por vários especialistas o melhor sistema de distribuição justamente por evitar o que aconteceu: quando falta energia numa área, a rede socorre. “Qualquer argumento contra é uma irracionalidade”, diz Pinguelli Rosa. “O que tem de mal no sistema interligado é por falta de investimento, fazendo com que uma falha pequena provoque esse transtorno enorme”. Seria como se um carro bom, tipo Volvo, andasse com pneu careca e sem freio sobre uma pista com óleo: não há tecnologia sueca que segure.

A própria equipe da Aneel, em sua visita à Ilha Solteira um dia depois do apagão, admitiu que o rompimento dos cabos pode ter sido provocado pela falta de conservação. O que reforça a corrente de suspeitas segundo as quais a energia que nos ilumina passa por cabos oxidados e deteriorados. A realidade de descaso (e irresponsabilidade) não deve ser muito diferente da suspeita. Na quarta-feira, quando divulgou a história do parafuso, o diretor-geral da Aneel, José Mario Abdo, informou que a agência está notificando a Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP), já condenada pelo apagão de 1999, e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) pelo blecaute de segunda-feira, e que as multas a serem aplicadas podem chegar a R$ 11 milhões. No caso da CTEEP, por falta de manutenção; no da ONS, pela perda do controle no restabelecimento da energia.

Prejuízo – A conta do desleixo é alta: causou um prejuízo de quase R$ 100 milhões à indústria do Estado do Rio, parou as montadoras de veículos da região do ABC, derrubou drasticamente o número de negócios na Bolsa de Valores de São Paulo e obrigou o grande e o pequeno comércio a fechar as portas. Hospitais entraram em pânico (39% dos hospitais de São Paulo não têm gerador). Enquanto a central de atendimento da Aneel recebia 21 mil ligações (a média em dia normal é de seis mil), os produtores de frango do Estado de São Paulo contabilizavam um prejuízo estimado em R$ 3,5 milhões. Só na Cooperativa Agropecuária Holambra, 50 mil frangos morreram pelo excesso de calor.

O acidente não teve nada a ver com o racionamento. E tampouco com o caixa das empresas: todo mundo paga muito para acender a luz. Segundo o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), nem com a adoção das 18 medidas para reestruturação do setor energético anunciadas pelo governo em janeiro, os consumidores – principalmente os residenciais – terão algum alívio. As medidas, segundo o Idec, servem para espantar o fantasma da explosão das tarifas a partir de 2003. Entre 1995 e 2001, a conta de luz residencial subiu 133% e a industrial, 85%. A inflação, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), foi de 76%.