O ano de 2002 começa com mais um round na batalha para garantir à população o fornecimento gratuito de remédios contra a Aids. De um lado do ringue estão os laboratórios farmacêuticos privados, que detêm o direito de propriedade para produzir o coquetel de pílulas que trata os 597 mil brasileiros portadores do vírus HIV. Do outro, um grupo de cientistas do Instituto de Tecnologia em Fármacos, ou Far-Manguinhos, laboratório que integra a centenária Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e onde são fabricados sete dos 12 medicamentos que combatem a doença. O novo capítulo dessa disputa será travado contra a multinacional GlaxoSmithKlein, fabricante do Amprenavir. O instituto carioca agora exerce pressão para que o preço do frasco seja reduzido de US$ 2 para US$ 1,20, uma queda de 40%. É mais uma briga de Davi e Golias. Na primeira queda-de-braço, em agosto do ano passado, o Ministério da Saúde venceu um duelo travado com os laboratórios Merck e Roche, fabricantes do Efavirenz e do Nelfinavir, respectivamente. O governo ameaçou quebrar a patente dos laboratórios por considerar seus preços abusivos e acabou negociando uma redução média de 40%, o que resultou numa economia de US$ 148 milhões, ou 36% nos gastos públicos com antivirais.

Em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, o laboratório pesquisa novos remédios 100% nacionais para inibir as enzimas que fazem o vírus HIV se replicar. A equipe também trabalha para reunir em uma única fórmula três princípios diferentes, o que reduziria o número indigesto de cápsulas do coquetel. O front da guerra contra a Aids está aglutinado num espaço de 500 metros quadrados dentro de Far-Manguinhos, um mergulho no Primeiro Mundo em plena miserável avenida Brasil, na zona norte do Rio de Janeiro. O prédio erguido em 1900 para fabricar soro contra a peste bubônica é um marco arquitetônico e foi construído sob a tutela do sanitarista Oswaldo Cruz, que no início do século passado instituiu a vacinação obrigatória contra a varíola e criou a profissão de comprador de ratos para erradicar a peste das ruas do Rio de Janeiro, então capital brasileira.

As mil e uma noites – Batizado de castelo Mourisco, a sede da Fiocruz lembra uma história de As mil e uma noites. Em seu suntuoso prédio de tijolos, 40 profissionais operam equipamentos de última geração avaliados em US$ 1,5 milhão. Ali são produzidos anualmente 140 milhões de comprimidos, pomadas e cápsulas destinadas ao tratamento dos soropositivos. É o suficiente para abastecer 40% da demanda brasileira de remédios antivirais com patente pública e distribuição gratuita. Para evitar riscos de desabastecimento, o restante da produção é atendida por instituições públicas de pesquisa, como o Laboratório Farmacêutico de Pernambuco (Lafep) e a Fundação de Remédio Popular de São Paulo (Furp). Hoje, Far-Manguinhos está apta a suprir a demanda nacional pelos sete medicamentos do coquetel. Por enquanto, os outros cinco remédios estão protegidos por patentes asseguradas às companhias privadas, mas isso não significa que o País não se capacite a quebrá-las no futuro. “Tudo aqui é feito com recursos gerados pelo próprio laboratório, sem verbas do governo”, observa o carioca Marcos Mandelli, diretor de negócios de Far-Manguinhos, cujo faturamento anual alcançou R$ 200 milhões.

A equipe agora alça vôos mais longos e planeja exportar seu conhecimento para outros países vítimas da Aids. Em setembro de 2001, o castelo Mourisco recebeu uma missão de Botsuana, país ao norte da África do Sul, e se prontificou a partilhar o conhecimento adquirido na produção de antivirais. Há negociações para repassar a mesma tecnologia para Angola, que tem cinco milhões de infectados pelo vírus HIV. Esses saborosos louros começaram a ser colhidos quando entrou em cena a química Eloan dos Santos Pinheiro, carioca de 56 anos com doutorado em tecnologia farmacêutica pela Universidade de Farmácia de Londres. Eloan chegou à Fiocruz em 1990. Sete anos depois, viajou para a Índia e a China para resolver um dilema: conseguir a matéria-prima para fabricar os antivirais brasileiros. Até então, os dois países não reconheciam as leis de patente em vigor. Sobretudo na Índia, Eloan encontrou situações paradoxais: um contexto de miséria associado a uma capacitação técnica de Primeiro Mundo. Eloan trouxe na bagagem os princípios ativos utilizados na fabricação de remédios anti-Aids. A essa altura, Far-Manguinhos já possuía a outra ponta – profissionais com alto nível de especialização –, e o combate à doença ganhava status de prioridade para o governo federal.

Em quatro anos, a Fiocruz passou a fabricar os sete componentes do coquetel, engrossando a lista de genéricos produzidos no País. São drogas que imitam a fórmula dos medicamentos à disposição no mercado, mas não carregam a mesma marca comercial. O que trouxe um especial sabor, no entanto, foi dobrar os gigantes Merck e Roche. “Conseguimos sentar em igualdade de condições”, festeja Eloan.

Negligência – A Aids não é o único foco da Far-Manguinhos. Uma de suas divisões produz remédios para doenças como tuberculose, malária ou hanseníase. Embora o número de unidades tenha crescido 220% nos últimos quatro anos, esses males não atraem a atenção dos laboratórios privados porque acometem pessoas de baixo poder aquisitivo. “Dois bilhões de pessoas no mundo não têm acesso a remédios vitais. Far-Manguinhos garante a produção desses medicamentos no Brasil, com controle de qualidade”, elogia a espanhola Ofélia García, coordenadora geral dos Médicos sem Fronteiras, entidade francesa que conta com o apoio de empresas internacionais para pesquisar e tratar doenças negligenciadas pelos grandes laboratórios.

Injeção histórica

Em 1900, quando nascia o Instituto Soroterápico Federal, mais tarde batizado de Fundação Oswaldo Cruz, o Brasil era considerado o túmulo dos estrangeiros. Febre tifóide, varíola, tuberculose, febre amarela, malária, difteria, rubéola e peste bubônica afastavam os turistas a ponto de países como a Itália proibirem a viagem a terras brasileiras. De simples produtor, o instituto passou a se dedicar à pesquisa e à medicina experimental, sobretudo depois que o sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) assumiu sua direção, em 1902. Dois anos depois, num de seus arroubos para combater mosquitos, Cruz enfrentou até um levante popular, que entrou para a história como a Revolta da Vacina. Era a resistência da população em se proteger contra a varíola, doença contagiosa que se manifesta em erupções cutâneas e mata um terço das vítimas.

Na semana passada, curiosamente, Bio-Manguinhos, divisão da Fiocruz que produz vacinas e testes para diagnosticar doenças, anunciou a volta da produção da injeção contra a varíola, suspensa desde 1970. Dessa vez, a medida foi tomada diante da iminente ameaça de uma guerra bacteriológica, desencadeada pelos atentados de 11 de setembro. Mesmo antes da disseminação da bactéria antraz pelo correio americano, Akira Homma, responsável pela produção dos imunizantes, já pensava em retomar a fabricação da vacina em vista da assustadora rapidez com que o vírus da varíola se propaga. Brasil e Estados Unidos serão os únicos países produtores da vacina.

A luta contra a dengue também é travada na Fiocruz. Far-Manguinhos desenvolveu uma vela feita com o bagaço da andiroba, planta amazônica que reduz entre 70% e 100% o apetite da fêmea do mosquito Aedes aegypti, responsável pela picada que transmite a doença. Far-Manguinhos licenciou dez laboratórios brasileiros para fabricar a vela, vendida entre R$ 2 e R$ 8. Mais um ponto para essa ilha de excelência.