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Deu no “The Porto Velho Marconigram”, o jornal dos engenheiros e operários americanos encarregados, no início do século passado, da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, na Amazônia brasileira: “Perigoso encontro com um tamanduá”. A matéria de primeira página da edição de 19 de novembro de 1910 narra em tom bem-humorado a aventura do dr. Garrett e de um funcionário da construtora, ambos envolvidos em uma “luta breve e decisiva com a fera” que, com “uma pata poderosa, rasgou a bota do médico e feriu-lhe a perna”. Essa publicação circulou na nascente Porto Velho (à época com uma população de mil habitantes), mas nenhum dos seus exemplares havia sobrevivido. Agora, uma dezena deles aparece reproduzida no livro “Trilhos na Selva” (Bei Editora), dos autores americanos Rose e Gary Neeleman, junto a imagens inéditas dos fotógrafos Oscar Pyles e Dana Merrill, o documentarista oficial desse empreendimento faraônico no meio da floresta, planejado para escoar a produção de borracha do Brasil e da Bolívia. De posse do valioso material, o casal Neeleman descortina um novo panorama sobre a história da Madeira-Mamoré centrando no cotidiano dos trabalhadores aventureiros. São detalhes anedóticos – e também trágicos – que, em meio à série de livros já publicados sobre o assunto, dão colorido a esse episódio com ares de epopeia.

Editado completamente em inglês, o “Marconigram” tinha a função de entreter uma mão de obra envolvida com perigos maiores que um mero tamanduá de patada certeira. Vítimas de malária, febre amarela, beribéri, febre hemorrágica e outros males tropicais, metade dessas pessoas vindas de diversas partes do mundo morria na selva, criando-se a lenda de que, debaixo de cada dormente da estrada de 360 quilômetros, escondia-se uma alma. Ao todo, dez mil trabalhadores perderam a vida e estão sepultados ao longo do rio Madeira. O dia a dia nas clareiras não era fácil. O uso do álcool era proibido. A prática religiosa, banida.

À noite, os trabalhadores ficavam aterrados com os uivos dos animais e muitos deles passavam a ter transtornos psicológicos.
O livro narra um episódio envolvendo o responsável pelo registro das horas de trabalho J.E. James que sentiu-se mal na mata e, com medo de pernoitar no local, começou a delirar. Baseado em outra edição do “Marconigram”, fica-se sabendo de um levante comandado por uma centena de alemães, em dezembro de 1910. Eles haviam sido contratados para trabalhar na construção, mas não imaginavam o “mico” em que iriam se meter. “Nas várias paradas feitas no rio Amazonas, a desilusão foi aumentando: quando chegaram a Porto Velho, recusaram-se a desembarcar”, lê-se no jornal. O que se segue é a formação de um pequeno exército rebelde ameaçando deflagrar uma “guerra civil na selva”. Atendidos, saíram em debandada. Nove homens que partiram numa jangada improvisada nunca mais foram vistos: mais tarde as cabeças de cinco deles foram encontradas flutuando no rio.

Segundo os Neeleman, a região era habitada pelos hostis índios paintintins e cangas-piranhas. Nem todos os nativos, contudo, eram perigosos. Os caripunas, de barriga avantajada por se alimentar unicamente de amido, aparecem em fotos de Merrill. O cacique veste um pijama que o fotógrafo havia comprado de um navio holandês de suprimentos: o trocou por flechas e algumas poses vaidosas. Em outra imagem, vê-se um caripuna de cabelo encaracolado, o que deveria ser uma moda local. Acompanhando a distância a chegada do progresso, as tribos indígenas ficavam admiradas ao ver uma locomotiva testando os trilhos. Se o bicho metálico parava de andar, viravam as costas, indiferentes.

Apesar de a construção da “Ferrovia do Diabo” ter sido uma façanha da engenharia (tinha até hospital completo), os trabalhadores narram esses episódios em tom de faroeste e até uma prática da corrida do ouro nos EUA é reproduzida no que eles chamavam de “zona ardente”: o pôquer. O jogo de cartas era praticado no dia seguinte ao pagamento e quem ganhasse deveria abandonar o emprego e retornar aos EUA. Alguns perdiam tudo, cerca de US$ 150, uma boa soma para a época. Voltar para o lar era, aliás, o sentimento geral, expresso inclusive em versos. O poeta mais frequente no “Marconigram”, R.S. Stout, não poupava o Brasil: o pintava como “a terra da febre sombria”.  

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