Meca dos fiéis da ópera, a pequena cidade de Bayreuth, na Alemanha, é palco todos os anos de um dos maiores festivais do gênero, inteiramente dedicado à obra do alemão Richard Wagner (1813-1883). Durante um mês, o Festspielhaus, o teatro amarelo que o rei Ludwig II mandou construir especialmente para as montagens de Wagner, atrai uma legião de aficionados que chegam a comprar com quatro anos de antecedência os ingressos para a montagem da tetralogia O anel dos nibelungos, carro-chefe da programação. Para marcar os 100 anos do festival, acontecido em 1976, a assinatura do espetáculo foi entregue a dois nomes franceses que marcaram época: o maestro Pierre Boulez, sempre inclinado a inovações, e o encenador e cineasta Patrice Chéreau, diretor do filme A rainha Margot. A montagem, que se repetiu durante quatro anos, foi concebida para se chamar O anel do centenário. Mas logo passou a ser conhecida como O anel do século, a maior já feita sobre a famosa saga germânica. É justamente esta jóia da música lírica, primeira documentação integral do ciclo, que acaba de chegar às lojas em quatro DVDs – O ouro do Reno, A valquíria, Siegfried e O crepúsculo dos deuses – cada qual trazendo uma das óperas da tetralogia, ou trilogia com um prólogo, como querem alguns.

Com um currículo de cinco montagens wagnerianas, o diretor de teatro Gerald Thomas, em cartaz em São Paulo com a peça Deus ex-machina e os super-ex-heróis na terra do impotente Viagra Falls, comemora o lançamento. “O Anel de Chéreau é a mais genial montagem feita de qualquer ópera jamais montada em todas as épocas”, afirma ele. “É um divisor de

águas o espetáculo que levou o conceito de modernidade para as encenações operísticas.” Thomas foi a Bayreuth assistir a este Anel lendário, em 1980, ano em que gravaram o vídeo que agora ganha versão em DVD, com a banda sonora ampliada do estéreo para o sistema dolby surround. Uma das ousadias de Chéreau foi transferir a ação, originalmente passada num tempo mítico, para a época da revolução industrial, transformando deuses em barões de fraque, adornados por barbas bem desenhadas. Não deu outra: os fiéis da religião wagneriana acolheram a montagem com um sonoro coro de vaias. Mas, para Thomas, a revolução de Chéreau não reside na modernização do enredo. “O grande negócio está na direção do ator-cantor. Antes dele, o que se via eram aqueles gordos que se limitavam a olhar para o maestro e projetar a voz.”

Para o espectador, outro cuidado – agora creditado ao cineasta Brian Large, encarregado da direção de imagens – foi a gravação sem a presença da platéia. Assim, Large pôde subir no palco e fazer vários movimentos de câmera impossíveis numa captação ao vivo. As soluções afastaram a sensação de teatro filmado, tão comum em empreitadas do gênero, e transformaram a longa duração de 14 horas – com exceção do prólogo O ouro do Reno, os três outros títulos ultrapassam as três horas e meia de duração cada um – em momentos de prazer e de rara beleza. Inspirado em lendas nórdicas e germânicas, a tetralogia wagneriana mostra a gênese da humanidade e a decadência dos deuses através da saga de Siegfried, herói nascido do amor incestuoso de dois gêmeos, Siegmund e Sieglinde, descendentes humanos do deus Wotan.

Embora com o tempo tenha ganho importância histórica, ainda hoje a montagem de Chéreau angaria críticas. Um exemplo vem do maestro e diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, John Neschling. “É um grande trabalho, mas ele esquematizou demais o Wagner. Tornou o espetáculo datado ao reduzir tudo à luta de classes.” Dentre as outras inovações na montagem de Chéreau, na qual se destacam o barítono Donald McIntyre (Wotan) e a soprano

Gwyneth Jones (Brünnhilde), está o cenário de O ouro do Reno, onde, em vez do rio alemão, se vê uma usina hidrelétrica. Mesmo visual do final, sem as águas, quando é anunciado o apagão do Crepúsculo dos deuses, momento em que Siegfried é morto pelo anão Hagen vestido como um executivo. Chéreau enfatizou o lado político e social embutido na saga, vendo no amaldiçoado anel de poderes ilimitados, roubado e passado de mão em mão, o símbolo da cobiça capitalista. A esquerda, pelo menos, adorou.