O batuque dos tambores de terreiro ou o ritmo alucinante que move o Carnaval não restringem a nossa ligação com a mãe África. A Isicathamiya, canto tradicional sul-africano de coro a capela – que para os zulus é a palavra designada para o movimento dançado de forma silenciosa e gentil, como o de um gato doméstico –, está mais presente nesse laço do que se possa imaginar a cultura afro-brasileira. Depois do sucesso de Samwaad – rua do encontro, o coreógrafo Ivaldo Bertazzo e os jovens do grupo Dança Comunidade mergulharam na conexão entre as duas culturas, em Milágrimas, espetáculo que estréia no dia 24 no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Longe de estereótipos e clichês, Milágrimas constrói uma ponte para estabelecer, de forma original e aberta, um diálogo entre África e Brasil. Movimentos belos e sutis ajudam a revelar confluências das rodas de samba de Clementina, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Guinga e da vanguarda urbana de Itamar Assumpção com o canto sul-africano, interpretado pelo grupo Kholwa Brothers, que passou cinco meses no Brasil ensinando passos aos bailarinos e músicas aos instrumentistas brasileiros.

Na estréia de Milágrimas, Ivaldo estará lançando o livro organizado por ele e pela socióloga Carmute Campelli Tenso equilíbrio na dança da sociedade, com textos de vários autores nascidos das periferias do Rio de Janeiro, como Paulo Lins (Cidade de Deus), e de São Paulo, como Ferréz (Capão Redondo), uma advertência de que só aplausos não tiram esses jovens da exclusão. O premiado coreógrafo busca, mais uma vez, não apenas ganhar o público pela excelência artística do espetáculo. Seu objetivo é chamar a atenção para o grupo que constitui o alicerce do projeto – patrocinado pelo Sesc-SP, Petrobras, Votorantim, Bombril e Primo Rossi – na vida desses meninos e meninas que já ganharam o mundo.

Em outubro, fizeram seis apresentações em Paris e agora se apresentarão em Amsterdã. Eles foram convidados a participar do festival de dança da Holanda. É como diz a poeta Alice Ruiz, parceira de Itamar Assumpção em Milágrimas, música-título do espetáculo: “A cada mil lágrimas sai um milagre.” Em 11 coreografias, Ivaldo costura o erudito, uma valsa, por exemplo, ao popular, o hip-hop, como em Pretobras, performance para a música de Itamar Assumpção. Como nas religiões afro-brasileiras, o sagrado e o dito profano se fundem para que o leque do resgate cultural entre os dois países se abra sem limitação de conceitos. A identidade está no movimento, no corpo, no olhar, na música e, principalmente, na história de cada jovem bailarino, morador da periferia paulistana onde o poder público não chega, restando apenas o preconceito, a educação frágil, ou quase inexistente, e a exclusão social. “Nossa função é ir além daquilo que o ensino público não supre. Devemos ensiná-los a saber estudar, raciocinar, comparar mundos e sociedades diferentes, e tirar conclusões dessas comparações”, ressalta o coreógrafo.