Um lote de bois retirado de caminhão do Assentamento Rural Savana, em Japorã, na fronteira com o Paraguai, para ser abatido num frigorífico de Eldorado, está na origem da febre aftosa que provocou o maior estrago na economia agropecuária brasileira no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O assentamento, localizado na antiga Fazenda Indiana, desapropriada há seis anos, pertence a agricultores ligados ao barulhento Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e foi responsável por aquilo que se tornou comum numa faixa de fronteira seca de 1.500 quilômetros: a compra de gado contrabandeado do Paraguai, apesar de se saber que o controle sanitário paraguaio é precário.

Uma cópia do relatório feito no final de outubro pelo Departamento de Operações
de Fronteira (DOF) – órgão da polícia de Mato Grosso do Sul – está nas mãos do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. Mas ele mantém segredo sobre a verdadeira origem do foco de aftosa, que vem sendo atribuída à Fazenda Vezozzo,
em Eldorado, município vizinho, onde foram encontradas as primeiras reses doentes. O documento não é definitivo, mas confirma o que todo mundo na região sabe há tempos: a doença veio do Paraguai, numa demonstração da promiscuidade existente na fronteira entre os dois países. Em um lugar onde a divisa só existe nos mapas, o gado passeia de um lado para outro, sem nenhum controle sanitário. Nas 60 páginas do documento, há inclusive fotos dos primeiros animais infectados e já sacrificados.

E as fotos são claras com relação à “nacionalidade” das reses: o tamanho da marca e o local onde o gado é marcado a ferro em brasa mostram o sistema paraguaio. “O pecuarista paraguaio marca o novilho ainda novinho e no lombo. Quando o animal cresce a marca fica enorme. No Brasil a marca é pequena e numa das pernas”, diz o secretário de Produção e Turismo de Mato Grosso do Sul, Dagoberto Nogueira Filho, que recebeu o relatório e já não tem mais dúvidas de que o gado doente que ameaça o “boi de ouro” das exportações brasileiras saiu de território paraguaio.

Excesso de carga – O relatório do DOF informa que a contaminação do gado da Fazenda Vezozzo se deu por vírus hospedados em restos de palha esparramados no assoalho do mesmo caminhão que fez o trajeto do assentamento ao frigorífico. Um dos trechos do documento explica que, no momento em que o caminhão era carregado na Fazenda Vezozzo, houve excesso de carga – o que levou o motorista
a pedir que alguns bois que haviam tido contato com a palha voltassem para o curral. Começava ali um foco que se esparramaria para outras 20 propriedades da mesma região.

Testes de laboratório realizados pelo Ministério da Agricultura também confirmaram que os animais que apresentavam lesões mais antigas provocadas pela aftosa estavam nos assentamentos, e não nas fazendas Vezozzo e Jangada, em Eldorado. Os principais focos estão em propriedades próximas à fronteira, onde os negócios entre brasileiros e paraguaios envolvendo gado são tão comuns quanto a muamba pura e simples. “É a busca do lucro fácil, da grana mesmo. Estão acostumados e não enxergam o risco”, diz o presidente da Agência de Defesa Sanitária Animal e Vegetal de Mato Grosso do Sul, João Cavallero. O preço da arroba do boi no Paraguai é menos da metade do preço no Brasil. Comprar boi lá e engordar aqui vira um negócio da Casa China, famosa loja de “importados” do Paraguai.

As estatísticas mostram que o Paraguai tem sido a origem dos grandes focos de aftosa registrados na região. Foi de lá que saiu o gado infectado que provocou epidemias em Porto Murtinho, em 1998; em Naviraí, em 1999; e o grande surto na Argentina, cinco anos atrás. A uma cultura que faz parte da região uniram-se a falta de investimentos em controle sanitário e a falta de vigilância, que o ministro Roberto Rodrigues chamou de “relaxamento geral” dos pecuaristas e do governo brasileiro. O ministro tem evitado responsabilizar os paraguaios por uma lógica diplomática: aposta na possibilidade de um acordo com o Paraguai para erradicar a aftosa, driblando o conflito. O país vizinho, aliás, fechou suas fronteiras à entrada de qualquer animal que saia do Brasil.

Isolamento – Vitrine do agronegócio brasileiro, a carne bovina despencou no mercado internacional e deve fazer uma enorme diferença na balança comercial. As entidades de classe estimam uma queda de 47% nas exportações, em novembro. E só não foi pior porque o ano está no fim. O governo isolou cinco municípios que fazem fronteira com o Paraguai – Eldorado, Japorã, Mundo Novo, Iguatemi e Itaquiraí –, criando um cinturão sanitário num raio de 25 quilômetros a partir da fazenda Vezozzo. Entre técnicos agrícolas, sanitaristas e ambientalistas, são mais de 300 pessoas percorrendo os locais em busca de novos focos para tentar erradicar a doença e devolver ao País o status de zona livre da aftosa.

Nas áreas interditadas, o controle é rigoroso. O trânsito de animais está proibido e só os técnicos ou policiais podem circular. As propriedades onde o rebanho completo já foi abatido permanecerão vazias por 30 dias. Depois, o governo colocará novilhos “sentinelas”, que servirão de cobaias. Embora o vírus sobreviva até 14 dias, os sanitaristas esperam um mês para fazer os novos exames. Se nenhum caso de contaminação surgir, a área será considerada livre. As estimativas oficiais indicam que o rebanho a ser abatido, no final da operação, pode chegar a 20 mil cabeças – mais de dois terços retirados de pequenos agricultores ou assentados da reforma agrária que receberam incentivos do governo federal para incluir em suas propriedades gado leiteiro e de corte. Uma grande parte dos proprietários não tem nota fiscal de compra que confirme a origem dos animais.