lampiao42_1.jpg

Seu Elias e seu Pedro. Em Olho D’Água do Casado, sertão sergipano, região do Baixo São Francisco, todos os conhecem. São mitos vivos da história do cangaço. Elias Marques, 95 anos, mora ao lado de Pedro de Tercila, 96, na praça central de Olho D’Água. Seu Elias foi membro da volante policial que, no amanhecer de 28 de julho de 1938, atacou de surpresa o bando do cangaceiro Lampião, acampado na Grota do Angico, às margens do rio São Francisco, e o assassinou, junto à mulher Maria Bonita e outros nove integrantes do grupo.

Seu Pedro, por seu lado, foi um dos principais “coiteiros” de Lampião, homem de confiança, encarregado de passar mensagens e fazer compras de víveres, remédios, roupas e munição.

Na hora das fotos, Elias passa o braço sobre os ombros de Pedro. Pedro e Elias, em tese, deveriam ser inimigos mortais, mas, “ficamos amigos há mais de 50 anos, quando percebemos que estávamos no mesmo barco: duas vítimas do jogo de poder entre os coronéis da época e os chefes do cangaço. Se eu não obedecesse às ordens do meu comandante, seria fuzilado sem perdão. Se Pedro não fizesse o que Lampião mandava, seria castrado ou apanharia de relho até morrer.”

lampiao42_2.jpg

Seu Pedro concorda com repetidos movimentos de cabeça. Cego de um olho e quase surdo, ele deixa Elias falar pelos dois: “O cangaço não é de ontem. É de hoje. Vocês não vêem televisão? A roubalheira, os poderosos usando e abusando do dinheiro público, o crime organizado deitando e rolando, e nós, do povo, sempre no meio, levando bala e sova de relho dos dois lados. Tudo continua do mesmo jeito, até pior. O Brasil sempre foi e continua sendo o país do cangaço.”

Na abertura da Semana do Cangaço, em Canindé, de 24 a 28 de julho, a platéia está lotada de estudantes. A palestra é de Vera Ferreira, neta de Lampião. Sua mãe, Expedita, é filha única do cangaceiro com Maria Bonita. Com apenas 21 dias de vida, Expedita foi entregue a uma família de coiteiros e criada por eles. A vida no cangaço não admitia a presença de crianças.

/wp-content/uploads/istoeimagens/imagens/mi_197458272093080.jpg/wp-content/uploads/istoeimagens/imagens/mi_197504094021080.jpg

Diz-se que Vera é quem carrega o “sangue” da família. Jornalista e pesquisadora, ela é a portadora do “raio da selibrina”, expressão regional que sintetiza rebelião, revolta, desejo de justiça, pavio curto, inteligência, argúcia, cabra-macha “e uma pitada de loucura, que sem isso não se chega a lugar algum”. Seu projeto para a criação de um Memorial do Cangaço foi finalmente aceito pela Prefeitura de Canindé. O prefeito, Orlando Porto de Andrade, já separou um terreno às margens do São Francisco e as obras começarão em breve.

A fala de Vera Ferreira foi curta, não durou mais de meia hora. Em compensação, a saraivada de perguntas dos estudantes durou mais de duas. Qual o nome de Lampião? Virgulino Ferreira da Silva. Por que ele virou cangaceiro? Vera desfia uma longa história de desavenças, vinganças e perseguições entre vizinhos que culminou no assassinato do pai de seu avô.

Por que surgiu o cangaço? Por conta da impunidade, da falta de responsabilidade e compromisso social dos políticos, do momento sociocultural da época e, sobretudo, “devido à ignorância e à lassidão de caráter do nosso povo, um povo que até hoje não faz valer seu voto, que vende seu voto em troca de uma dentadura ou uma camiseta”, diz ela. A platéia aplaude.

/wp-content/uploads/istoeimagens/imagens/mi_197545478848080.jpg

Na Missa do Cangaço, ponto alto da Semana do Cangaço, celebrada na manhã de sábado, 28 de julho, na Grota do Angico, estavam todos. Autoridades municipais e estaduais sergipanas, jornalistas, escritores e pesquisadores, mais umas duas centenas de populares. Todos, menos o padre. Preferiu ficar em Poço Redondo rezando uma outra missa, também em sufrágio dos cangaceiros mortos. Mas não seria por falta de padre que as almas dos cangaceiros seriam privadas de suas homenagens. Dona Maria do Socorro Feitosa Guimarães, beata ilustre de Canindé, abriu a bolsa, puxou um rosário e exclamou: “Não tem padre? Pois vamos rezar o terço.” E desfiou a ladainha de pais-nossos, ave-marias e salve-rainhas, com o coro dos presentes. Uma voz de homem comentou: “Por isso é que acho errado a Igreja não abrir o sacerdócio às mulheres.”

Terminado o rosário, na barranca do rio São Francisco, uma peixada de surubim aguardava, regada a cerveja, suco de cajá e graviola, ao som de uma banda arretada de forró. Washington Rodrigues Correa, sobrinho-neto de Pedro de Cândido, o coiteiro de Lampião que traiu o cangaceiro e revelou – forçado pelas milícias – o local onde ele e seu bando acampavam, na Grota do Angico, sentou-se com os jornalistas.

/wp-content/uploads/istoeimagens/imagens/mi_197598864413080.jpg

 

Alguém lhe perguntou: “Washington, você é descendente do homem que traiu Lampião, e talvez mais do que ninguém carrega o peso dos dramas do cangaço. Diga lá, de coração: Lampião foi um herói ou um bandido?”

Sua resposta não podia ser mais inquietante: “Lampião foi simplesmente um brasileiro.”

Um mito no Nordeste brasileiro
Lampião, ou Virgulino Ferreira da Silva, o rei do cangaço, nasceu em 1898 em Vila Bela, município de Serra Talhada, Pernambuco, e morreu assassinado pelas forças da ordem, na Grota do Angico, Sergipe, em 1938. Passou metade dos seus 40 anos no comando de seu bando de cangaceiros, com os quais percorreu os sertões de sete Estados: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Justiceiro e herói para alguns e bandido sanguinário para outros, ele e sua companheira Maria Bonita são um mito em todo o Nordeste brasileiro.

Na França, a historiadora Élise Jasmin dirige um grupo de estudos acadêmicos sobre o cangaço. Seu último livro, Cangaceiros, acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Terceiro Nome.