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Era tarde da sexta-feira 20 de julho, véspera das disputas pelas medalhas de ouro no boxe nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro. Os cubanos Erislandy Lara Zantaya, 24 anos, e Guillermo Rigondioxu Ortiz, 26, bicampeões mundiais, eram tidos como favoritos, mas, naquela tarde, tudo o que queriam era sair para comprar um simples videogame, objeto raro na terra de Fidel Castro. A ida às compras foi atropelada por uma sucessão de fatos inesperados. Lara e Rigondioxu não voltaram mais ao alojamento e foram dados como fugitivos políticos. O que ocorreu daquela tarde em diante se configurou numa polêmica diplomática envolvendo Brasil e Cuba ainda não totalmente esclarecida. Pelas apurações feitas pela Polícia Federal, no caminho até a loja de videogames, os cubanos teriam sido abordados pelo alemão Thomas Doering, que se identificava como Michael, e por um espanhol residente na Alemanha que dizia se chamar Alex e atraídos por uma proposta tentadora. O alemão lhes prometia pagar milhares de dólares em cada luta a ser disputada na Europa ou nos Estados Unidos. Para comprovar que estavam dispostos a cumprir o prometido, os “novos companheiros” brindaram os atletas de imediato com coisas inatingíveis aos cubanos comuns na pequena ilha do comandante Fidel: bebibas e comida em fartura, boates e muitas mulheres.

De táxi, o grupo foi inicialmente para Niterói. Compraram o videogame, roupas, perfumes e passaram por diversas casas noturnas. Garotas de programa se juntaram a eles, que mais tarde rumaram em direção à Região dos Lagos. Prostitutas de Araruama, o último destino dos pugilistas no Brasil, contam que em nenhum momento os atletas consideravam a hipótese de voltar a Cuba. Estavam mesmo dedicados a bagunça, sexo, cervejas, saúna e muitos pratos da região. Em determinado momento, os cubanos gargalhavam enquanto arremessavam notas de R$ 50 pela janela do carro. Chegaram a comprar 50 latinhas de energético.

Em Araruama, o grupo ocupou duas suites da Estalagem dos Piratas. Estavam acompanhados por três prostitutas. Apenas o alemão não tinha companhia. Uma morena não desgrudava de Lara, uma loira não parava de sorrir com as brincadeiras de Rigondioxu e uma mulher de pele bem clara e cabelos negros enamorava o espanhol “Alex”. Boa parte do tempo os casais se divertiam na saúna, mas chegaram a quebrar um beliche quando a bagunça foi transferida para os quartos. Na quarta- feira 1º de agosto veio a ressaca. Preocupado com a repercussão dada ao desaparecimento dos cubanos, o alemão resolveu sair de cena. Levou consigo o espanhol e, claro, as mulheres.

Abandonados e procurados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, os atletas cubanos resolveram pedir ajuda. Foram à praia e recorreram ao salvavidas Ubiratan de Carvalho. “Eles disseram que queriam voltar e chamei a polícia. Enquanto os policiais não chegaram, ficaram brincando com uma prancha de surfe e jogando pedrinhas um no outro”, lembra o salva-vidas.

Na madrugada do domingo 5, Lara e Rigondioxu desembarcaram no aeroporto de Havana. O comandante Fidel prometeu que não os puniria. Não era verdade. ISTOÉ falou com parentes de Lara em Cuba na quarta-feira 8 e na quintafeira 9. O boxeador ainda não havia chegado em sua casa. Na quarta-feira 8, a noiva de Lara, Miriam, 20 anos, lamentava que ainda não o tinha visto. O casal tem um filho. “Só a mãe dele foi autorizada a visitá-lo”, disse Miriam. Na quinta-feira 9, quem atendeu o telefone da casa do boxeador foi sua sogra, Eliana. “Ele está na casa de descanso”, disse Eliana. Ela nega que o rapaz tenha sido preso. “Ele está desfrutando um descanso.” Com Rigondioxu o regime de Fidel foi mais complacente. Ele já está em casa, deu entrevistas e insiste em mostrar-se arrependido. O problema é que sua versão não confere com as apurações da PF. “Houve uma grande indisciplina da nossa parte” disse Rigondioxu. “Começamos a beber, comer e passamos do peso. Seríamos desclassificados e por isso não fomos competir.” Como prêmio pelo arrependimento televisado para todo o país, o regime cubano autorizou a família de Rigondioxu a fazer uma festa, com direito a uma grande regalia: comeram um leitão.

A chegada dos boxeadores à ilha não encerra a polêmica instalada no Brasil. Afinal, por que razão o governo brasileiro teria deportado os atletas cubanos tão rapidamente? Oficialmente, teria feito isso a pedido dos próprios atletas. Mas tudo parece uma armação. Na sexta-feira 3, o delegado federal Felício Laterça ouviu os pugilistas. Os dois depoimentos são exatamente iguais, até nos pontos e vírgulas. Delegados ouvidos por ISTOÉ acham isso um absurdo. O “intérprete” do depoimento foi o policial civil Moisés Ernani Colman, de Mato Grosso do Sul. Ele não quer falar, a exemplo do advogado Marco Aurélio Costa Drummond, que assina os depoimentos.

O Itamaraty afirma que não teve nenhuma participação na deportação dos cubanos e alega que tudo foi conduzido pela PF. A questão foi parar no Congresso. O senador Heráclito Fortes, do DEM piauiense, comparou a saída dos cubanos à deportação da judia Olga Benário, esposa do líder revolucionário Luiz Carlos Prestes, entregue por Getúlio Vargas aos nazistas. O ministro da Justiça, Tarso Genro, acusou os oposicionistas de botar muita lenha na fogueira. “Pretendiam que a gente seqüestrasse os cubanos para criar fatos políticos”, acusou.

Se depender do regime cubano, é bom esquecer as respostas. Na embaixada de Cuba em Brasília, um sujeito que se apresentou como “conselheiro Sérgio”, e não fornece o nome completo, demonstrou irritação com as perguntas feitas por ISTOÉ sobre o paradeiro dos atletas. “Não sei se o senhor não tem outras notícias para dar cobertura”, diz o conselheiro. “Você tem uma quantidade de notícias para cobrir em Brasília e já se falou bastante sobre os boxeadores.”