Uma escola privada no interior da Inglaterra, na qual crianças órfãs são incentivadas à criatividade e ao auto-aperfeiçoamento. Nesse aparentemente normal e elogiável cenário se desenrola a trama de Não me abandone jamais (Companhia das Letras, 344 págs., R$ 45), sexta novela do autor Kazuo Ishiguro e provavelmente sua mais amarga reflexão sobre o futuro (nem tão futuro assim) do homem moderno. Um homem que não hesita em lançar mão da ciência – mais especificamente da clonagem – para criar o que acaba por se revelar um monstruoso pesadelo: aquelas crianças e jovens são clones produzidos em verdadeiras fazendas humanas, com a única função de abastecer o mercado de doação de órgãos que os avanços da medicina consolidam. O papel do conhecimento e da educação é tão-somente mantê-los ocupados, ativos e, principalmente, iludidos até o dia em que estiverem prontos para encher as geladeiras dos hospitais de transplantes.

Ao contrário do que se poderia imaginar no cenário habitual do politicamente correto, Ishiguro – nascido no Japão, criado desde os seis anos na Grã-Bretanha e hoje um dos mais premiados autores da nova literatura inglesa – não dá ao leitor o benefício da indignação. A história se desenrola dentro de uma lógica de que o destino dos clones é inexorável e não há ao longo de toda a trama mais que uma inócua e insignificante insinuação de revolta moral – e não é, curiosamente, dos próprios interessados. Lembrando irremediavelmente o universo geneticamente predestinado de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, Não me abandone jamais faz questão de, ao contrário daquele, mostrar que é do homem se acostumar a tudo, até à aberração. Sua leitura incomoda pela absoluta indiferença que o terror desperta nos que por ele serão afetados. Os fatos da vida dos personagens do livro, narrados por uma cuidadora dos clones que iniciaram seu caminho de doações até a morte inevitável, clone ela também e, portanto, futura doadora, não chocam o leitor, apenas o intrigam. A resignação, que pode parecer absurda a olho nu, percorre toda a narrativa sem sequer assumir-se como bandeira. Não há, ao longo de toda a história, heróis ou bandidos, mas apenas uma realidade nua e assustadora – porque impressionantemente verossímil.