Poucas vezes enquadrada sem a vigorosa moldura social dos romances de Jorge Amado, Salvador vem merecendo há tempos um retrato mais contemporâneo de suas contradições. Ao optar por esta via mais arriscada, Cidade Baixa (Brasil, 2005), estréia na ficção do baiano Sérgio Machado, colaborador habitual nos filmes de Walter Salles, já marca ponto como obra inovadora. Muito embora o próprio Machado reconheça a marca do humanismo do escritor baiano em sua visão dos excluídos. Passada no submundo dos botecos, boates de strip-tease e becos sujos da parte menos turística da cidade, a trama que chega aos cinemas na sexta-feira 4, acompanha a vida de dois biscateiros do porto – Naldinho (Wagner Moura) e Neco (Lázaro Ramos), sócios num pequeno barco de entregas. Numa viagem ao interior, eles conhecem a prostituta Karina (Alice Braga), que quer tentar a vida como dançarina em Salvador. Está formado o triângulo amoroso que a câmera virtuosa de Toca Seabra registra de forma quase epidérmica. Numa cena amorosa entre Naldinho e Karina, os corpos suados cintilam salpicados de purpurina, em tons saturados que devem muito ao fotógrafo baiano Mario Cravo Neto. É um exemplo, entre muitos, de uma bela imagem.

Outro salto de Cidade Baixa, agora fora do contexto baiano, está no recorte dos personagens: sabe-se desde o início, e sem delongas, quem são, como vivem e com o que sonham os tipos mostrados. E os atores, ótimos, entregam-se a eles de corpo e alma. O que você faz?, pergunta a médica para Karina. Sou dançarina, diz ela, ensimesmada. Onde mora? Estou de mudança. Os pequenos golpes surgem, então, como atos mesmo da sobrevivência. Num programa no porto, Karina simula uma overdose de cocaína a bordo de um navio estrangeiro para que os amigos esvaziem o bolso do capitão; Naldinho passa a roubar Viagra em farmácia para bancar o aluguel de um quarto e viver com a garota; Neco, também lutador de boxe, pensa o mesmo e perde lutas acertadas de antemão por um cachê irrisório – e assim leva-se a vida.

É um mundo violento por natureza. Já na abertura do filme, Neco mata o homem que apunhalara Naldinho numa rinha de galos. Que ninguém tenha dúvida – Naldinho, o branco, e Neco, o negro, são de fato aqueles galos que vão se bicar para sempre, amigos e rivais desde a infância. A mulher que passam a dividir, Karina, é também o que ameaça esse amor fraterno – há até uma cena em que os dois desvalorizam o sexo feminino em favor da nobreza da amizade. Não se está, obviamente, no paraíso do desejo de Jorge Amado. Ou seja: longe de atabaques e com sua estridente música de boate, Cidade Baixa é um Dona Flor e seus dois maridos desencantado. O problema é que Machado não leva a cabo a sua amarga descoberta. Ou equação, já que a dramaturgia não esconde o feitio de fórmula bem pensada. Como não captura a violência constitutiva de seus personagens – ela está lá, mas não pulsa verdadeiramente –, perde o fio trágico e deixa a verdade escapar em palavras pálidas. Aí todo diálogo fica oco e todo sangue se mostra viscoso e falso.