Uma paciente de 63 anos foi ao consultório de seu médico, o clínico-geral Kenard Hahn, de Nova York, nos Estados Unidos, e perguntou: “Doutor, o senhor não acha que está na hora de conversarmos sobre o Proscar?” A resposta custou a sair: “Não, não acho que tenhamos de conversar sobre Proscar. Só faremos isso quando a senhora apresentar problemas de próstata. O que, acredito, não ocorrerá.” O diálogo parece uma anedota, mas é verdadeiro, e variações dele acontecem diariamente com outras drogas no lugar do Proscar (contra câncer de próstata) em clínicas americanas. “E na maioria das vezes é difícil convencer o doente de que ele não precisa da droga que está pedindo”, diz Hahn. A legião de americanos que vai aos consultórios, como zumbis em busca de remédios que desconhecem totalmente, está cada vez maior. Somente no ano passado, 8,5 milhões de pessoas pediram a seus doutores receitas de algum remédio, segundo a Associação Médica Americana.

Hoje, 50% dos americanos tomam pelo menos uma pílula diariamente. Destes, um em cada seis engole três ou mais cápsulas. “Ou a nação está cronicamente doente ou há algo errado neste quadro”, diz Greg Critser, autor do best-seller Generation Rx (Geração Farmácia, numa tradução livre). Seu livro descreve o processo que levou a América às drogarias em busca do que não precisa. É a mesma linha da obra de Kathleen Slattery-Moschkau, ex-representante de laboratório farmacêutico que resolveu denunciar seus antigos patrões. Um texto escrito por ela – Side effects (efeitos colaterais) – virou filme independente e estréia nos EUA na sexta-feira 4. Ela fala com conhecimento de causa, pois usava os truques de marketing da indústria, como levar médicos a jantares para convencê-los a prescrever um medicamento.

Na verdade, Tio Sam não está moribundo nem é hipocondríaco por natureza. Os motivos de seu apego exagerado aos remédios têm outras raízes. A principal é a brutal estratégia de marketing do segmento farmacêutico posta em prática a partir de 1991. Naquele ano, o setor gastou US$ 55 milhões em propaganda. Uma miséria, comparada aos US$ 3 bilhões desembolsados em 2003 ou aos US$ 5,5 bilhões estimados para 2005. E nesse espaço de tempo a legislação americana liberalizou a publicidade de remédios, permitida em rádio e televisão.

Como um flautista de Hamelin – da fábula na qual as crianças são atraídas à morte no rio seguindo o som do instrumento – comerciais de rádio e de tevê estão hipnotizando a população. “Eles vendem um estilo de vida. É como um anúncio de carro esporte”, diz Critser. Num deles, vêem-se jovens saudáveis, bem vestidos e em cenário espetacular. Um, porém, não parece aproveitar as benesses daquele paraíso. Uma voz ao fundo pergunta: “Você se sente angustiado? A tristeza o acompanha? Pergunte a seu médico sobre o remédio X.” Não diz para que serve a droga. Uma lista de efeitos colaterais é descrita num sussurro corrido, apenas para obedecer à legislação. Num caso desses, o que se vende é um modus vivendi. “A geração que viveu os anos 60 está envelhecendo e os problemas de saúde colocam freios na vida de quem se acostumou a fazer o que quer do corpo. Essa mesma geração deu a partida nos experimentos com drogas recreativas e portanto não é avessa a tomar substâncias que prometem o paraíso. Combine-se isso à falta de escrúpulos de uma indústria que só visa ao lucro e à uma legislação favorável ao abuso e temos um quadro negro na saúde”, diz Kathleen Moschkau.

O resultado é que os americanos gastarão US$ 500 bilhões com remédios neste ano, além dos US$ 100 bilhões desembolsados pelo sistema de saúde pública. Entre os campeões de vendas estão os antidepressivos e os remédios para problemas gastrointestinais. A tevê está estufada com propagandas de gente sofrendo com gases, diarréia, má digestão. “Também, comendo o que os americanos comem, não é de estranhar. E remédio algum vai curá-los. Do que precisam é de dieta”, diz o médico Hahn. “Tomar o que os comerciais recomendam só traz mais problemas, como complicações hepáticas”, completa.