O peronismo é um fenômeno tipicamente argentino, que freqüentemente deixa os estrangeiros que tentam esquadrinhá-lo mais zonzos do que neófitos frente a uma pintura cubista. Sabe-se, entre outras coisas, que esse movimento se fez à imagem e semelhança do Grande Líder de turno. Assim, nos tempos de seu fundador, o general Juan Domingo Perón – que governou a Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974 –, o peronismo foi inicialmente populista, autoritário e nacionalista. Já nos anos 70, depois do breve flerte de El Viejo com os Montoneros (a esquerda armada do movimento), o justicialismo bandeou-se para a extrema-direita anticomunista e mafiosa de López Rega, uma espécie de Rasputin da corte da presidente Isabelita Perón (1974-1976). Nos tempos de Carlos Menem, presidente da Argentina entre 1989 e 1999, o peronismo travestiu-se de dama neoliberal, que adorava ter “relações carnais” com Tio Sam. Agora, três décadas depois da morte do caudilho, o movimento está prestes a metamorfosear-se em partido de centro-esquerda, de acordo com o modelito de seu novo líder, o presidente Néstor Kirchner. É que, dois anos depois de ter sido eleito com apenas 22% dos votos, ele finalmente teve o aval para assumir o comando do peronismo e tentar unificá-lo. Nas eleições de domingo 23, Kirchner e seus aliados conquistaram 50% dos votos, ganhando em 17 das 24 províncias da Argentina e ampliando sua presença no Congresso (que renovou um terço do Senado e metade da Câmara dos Deputados; leia quadro). O presidente também impôs uma dura derrota aos seus maiores adversários políticos dentro do justicialismo: seu ex-padrinho e hoje inimigo, o ex-presidente Eduardo Duhalde, e Carlos Menem, que foi eleito senador em segundo lugar na sua província natal, La Rioja. De quebra, a primeira-dama, Cristina Fernández de Kirchner, se elegeu senadora pela província de Buenos Aires com 46% dos votos, muito à frente da rival Hilda “Chiche” Duhalde (19,7%), e desponta como a maior estrela em ascensão no cenário político argentino.

Há quem diga que a senadora Cristina Fernández, aos 52 anos, glamourosa, independente e inteligente, tenha ambições políticas tão grandes ou maiores ainda do que as de seu marido e que ela seria candidata a ocupar a Casa Rosada já em 2007 ou, no máximo, em 2011. Ecos de Evita? A mulher de Perón, a maior líder de massas da Argentina, ofuscou o próprio Jefe e sua ascensão meteórica só foi interrompida pela morte prematura em 1953, aos 33 anos, de câncer. Críticos dizem que nesta campanha a primeira-dama imitou até a cadência de voz de Evita. Mas nisso Cristina não é original, porque o modelo da líder dos “descamisados” ainda é adotado por nove entre dez líderes peronistas com alguma ambição política. Mas a senadora tem luz própria. “Cristina é o político com melhor imagem no país”, afirma o analista Enrique Zuleta Puceiro. “A imagem do presidente tem uma combinação mais instável de desempenho e apoio. A dela, que é prévia à sua condição de primeira-dama, junta, na percepção pública, atributos de inteligência, compromisso, vontade, decisão, juventude e solidez intelectual”, completa.

Derrotas – Mas nem tudo foram flores para Kirchner. Em Buenos Aires, Mauricio Macri, presidente do time de futebol mais popular do país, o Boca Juniors, foi eleito deputado com 33,9%, muito à frente do candidato da Casa Rosada, o ex-chanceler Rafael Bielsa, que amargou um terceiro lugar, com 20,5% dos votos, atrás de Elisa Carrió, da centro-esquerdista Alternativa para uma República de Iguais (ARI), que teve 21,9%. Esse resultado credencia Macri, da aliança de centro-direita Proposta Republicana (PRO), como principal liderança da oposição conservadora para as eleições presidenciais de 2007.

Mas ainda falta tempo para a sucessão. Agora, a disputa é no interior do peronismo, ainda a maior força política argentina. Depois de uma década de hegemonia menenista, o kirchnerismo tentará moldar o legado de Perón ao seu projeto, uma alternativa de centro-esquerda adaptada à globalização. Se vai consegui-lo, é cedo para dizer. “A história indica que o peronismo nunca teve essa orientação e que Kirchner nunca prescindiu dela”, diz o jornal Clarín. A insistência nesse programa pode levar los muchachos a um racha definitivo, mas a história também mostra que o movimento nunca deixou de seguir a orientação de seu líder. Que hoje, incontestavelmente, é Néstor Kirchner.