Ela sofreu com o drama das crianças no Paquistão, conviveu com a miséria vivida pelos meninos e meninas africanas na Namíbia, confrontou-se com as epidemias de Aids em jovens de Moçambique e, agora, encara o desafio de ajudar a minimizar o sofrimento de milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Marie-Pierre Poirier, representante do Unicef no Brasil, está há um ano no País e administra uma verba anual de US$ 17 milhões. Francesa – aprendeu a falar português em Moçambique –, estima que são 27 milhões as crianças e jovens brasileiros miseravelmente excluídos da sociedade. E são neles que os olhos azuis de Marie-Pierre estão focados. Nessa entrevista, Marie-Pierre, 44 anos e mãe de dois filhos, faz um alerta para que o governo olhe com mais atenção as crianças e diz que o pouco mais de ano que falta para terminar o mandato do presidente Lula significa muito tempo para quem está na miséria.

ISTOÉ – Quais são as prioridades do Unicef no Brasil?
Marie-Pierre Poirier –
Avançar em pontos fundamentais do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a educação, o combate à mortalidade infantil, o enfrentamento da violência sexual, a luta pela erradicação do trabalho infantil e a prevenção da Aids. O nosso desafio e a nossa responsabilidade são fortalecer a capacidade brasileira de cuidar das crianças. E fazer com que elas exijam a realização dos seus direitos. Não é nosso o dever de cuidar das crianças do Brasil. É fundamental entender que quem tem essa responsabilidade é o brasileiro, são as famílias, o Estado e a sociedade. Faz parte da nossa missão alertar quando alguma coisa não está dando certo e tentar ajudar a quebrar o ciclo de pobreza no Brasil. Todas as pesquisas mostram que o país que investe no social consegue impacto no crescimento econômico. Não é só com o crescimento econômico que vamos repartir o bolo, mas com a escolha da agenda social como prioridade nacional. O desenvolvimento humano ao lado do social. Investir na criança não é uma coisa do coração, de carinho, é uma escolha estratégica para o futuro. É uma questão de escolha política.

ISTOÉ – E o Brasil está fazendo seu dever?
Marie –
Este governo começou com algumas
pautas fortes na área social para mostrar que
existia o compromisso de colocar o foco na
pessoa. Eles começaram certos, com o conceito
de universalização dos direitos que é o Fome
Zero. Mas a falta de melhores articulações e
controle social está impedindo uma avaliação dos resultados dos programas.

ISTOÉ – Por exemplo?
Marie –
A questão da mortalidade infantil. Apesar de ter conseguido resultados positivos, o Brasil ainda está em terceiro pior lugar na América do Sul. Temos países muito mais pobres com indicadores sociais muito melhores que o Brasil. O presidente Lula tem que cobrar mais resultados concretos de seu governo. Não é só a intenção que resolve.

ISTOÉ – Como saber onde é maior a prioridade para o investimento
social, num país com tantas deficiências?
Marie –
Existem muitos critérios para analisar isso, um é o geográfico. Todos sabemos que no semi-árido brasileiro vivem 11 milhões de crianças necessitadas. Lá a mortalidade infantil, em 95% dos lugares, é maior que a média nacional. Todos os indicadores sociais mostram que a maior vulnerabilidade é lá. Temos que reverter essa desigualdade. Não é necessário colocar um curativo para tampar essa cicatriz, temos que mudar.

ISTOÉ – Qual o resultado concreto da ação deste governo na educação?
Marie –
O Brasil escolheu num primeiro momento o acesso. O que deu certo até
um ponto. Só que agora eles têm que ensinar a essas crianças. As escolas estão mais cheias de alunos, mas falta qualidade a esse ensino. O Brasil corre o risco
de ficar nas estatísticas. Aliás, as crianças das estatísticas nacionais não existem, são uma invenção matemática. Comemora-se que temos 97% das crianças nas escolas. Mas, os 3% que ficam de fora representam 740 mil. É muita gente. Ainda
se precisa de muito trabalho do ponto de vista de ensiná-las a ler e escrever,
porque 2,7 milhões de crianças não completam a 4ª série. E muitas saem
das escolas analfabetas.

ISTOÉ – E quanto à violência contra os jovens?
Marie –
Tem atingido índices alarmantes. Aumentou 82,05% em 13 anos. Tenho a impressão que na consciência coletiva dos brasileiros é o jovem o despertador da violência. Mas as estatísticas mostram o contrário. É preocupante o número tanto da violência urbana quanto das agressões sexuais. Em um ano quase dois mil adolescentes, no Brasil, foram vitimas de homicídios. E 49% dos casos de abusos sexuais acontecem com crianças menores de cinco anos. Os jovens não são os agentes propulsores da violência, são vítimas dela.

ISTOÉ – O presidente Lula, que
tem
o título de Presidente Amigo da
Criança, tem sido criticado pelas entidades que trabalham na área da infância, pois seu governo estaria fazendo menos pela criança do que
a administração anterior. A sra. concorda com essa análise?
Marie –
A agenda social não está sendo cumprida. Temos muitos desafios pela frente. O ritmo poderia ser acelerado.

ISTOÉ – O ECA acaba de completar
15 anos de existência. Quais são as dificuldades de colocar em prática o que está no papel?
Marie –
O ECA foi uma superconquista do povo brasileiro. O desafio continua sendo a sua implementação. As leis são importantes e dão forças às organizações, mas agora é fazer acontecer. A capacidade de respostas, quando os casos são colocados, é fraca. O aparelho do Estado não acompanha as demandas.

ISTOÉ – Os aliados do presidente Lula têm discursado sobre a necessidade
de mais um mandato para que ele possa resolver as injustiças sociais do
Brasil. O que a sra. acha desse argumento?
Marie –
Falta um ano e pouco para o fim de seu mandato. Por que ele não
aproveita esse tempo para fazer alguma coisa? Quando a criança é pobre,
frágil, um ano e pouco é muito tempo.