Mais um capítulo da novela em busca de esclarecimentos sobre o que se passou durante a ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985 começou a ser escrito na quinta-feira 19, graças a um novo documentário. Em “Perdão, Mister Fiel”, apresentado no 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que aborda a morte sob tortura do operário Manoel Fiel Filho, em São Paulo, há um depoimento polêmico: o de Marival Chaves, ex-agente do serviço de inteligência do Exército, que detalha o que viu e ouviu nos porões do DOI-Codi, um dos órgãos de repressão política que se instalaram no Brasil. A revelação mais contundente foi a de que, após torturados e assassinados, os corpos dos presos políticos eram esquartejados. Por isso, muitos nunca foram encontrados. Entre eles estaria o do deputado federal Rubens Paiva, pai do escritor Marcelo Rubens Paiva.

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MEMÓRIA Rubens Paiva e seu filho, Marcelo.
Passado revelado por Marival Chaves

Não é a primeira vez que Marival conta sobre essa ação macabra dos torturadores. Em 2004, ele deu pistas dessa prática numa entrevista à ISTOÉ. O sádico que teria cometido a barbaridade seria o cabo Félix Freire Dias, codinomes “Doutor Magro” e “Doutor Magno”. Ele era famoso pela atuação na Casa de Petrópolis, no Rio de Janeiro, um dos principais locais de tortura do País, destino de Rubens Paiva, preso no dia 20 de janeiro de 1971, por agentes do DOI-Codi. “O Doutor Magno sentia um prazer mórbido em me contar que apostava com o carcereiro quantos pedaços ia dar o corpo de determinado prisioneiro executado.

As impressões digitais eram as primeiras partes a serem cortadas”, afirmou Marival à ISTOÉ cinco anos atrás. Ele também revelou o destino dos corpos. Cortados nas juntas, os pedaços eram colocados em sacos plásticos e enterrados em lugares diferentes, para dificultar a localização. As confissões do cabo contribuíram para que Marival pedisse demissão do Exército, sem nenhum rendimento, no final do governo João Baptista Figueiredo (1979-1985). O cineasta Jorge Oliveira, diretor do documentário, diz que teve acesso a uma lista com nomes de oficiais, desde o alto escalão, envolvidos nas histórias dos anos de chumbo.

Dos cabeças das operações, ninguém quis falar. Oliveira foi baixando na hierarquia até conseguir encontrar quem concordasse em conversar. Chegou a Marival. “Mas não esperava que a declaração chegasse a esse ponto”, diz o cineasta. “Fiquei impactado e indignado.” Ao ser procurado pela reportagem de ISTOÉ na quarta-feira 18, Marival Chaves, hoje um naturopata residente em Vila Velha (ES), ficou nervoso. Insistiu na tese de que nunca sujou as mãos de sangue e não temia ameaças. “Trabalhei no sistema sim. Mas quem é militar se submete às regras. Quando vê, está envolvido”, disse. O ex-agente afirmou que analisava documentos e propunha operações, mas não quis explicar como elas funcionavam. Conta que concordou em participar do documentário “por um compromisso público com o País e a história”. É a favor da abertura dos arquivos secretos, mas avisa que parte importante dos documentos foi manipulada. E garante que, caso a Justiça o convoque, presta depoimento oficialmente e reafirma tudo o que disse. Detalhe: até hoje, nunca foi chamado.

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O fato de pessoas ligadas à ditadura militar já terem revelado várias passagens do período e nunca terem sido convocadas pela Justiça para prestar esclarecimentos incomoda as entidades de defesa dos direitos humanos. “Há anos surgem revelações de quem participou de alguma maneira do regime e me parece estranhoque esses indivíduos nunca tenham sido intimados oficialmente a depor”, diz Elizabeth Silveira e Silva, do grupo Tortura Nunca Mais. Ela afirma que governo nenhum apresentou vontade política de deixar as histórias às claras porque muitos dos torturadores ainda fazem parte de importantes esferas do poder público.

DECISÃO
O Supremo Tribunal Federal
deverá definir se torturadores
também são anistiados

 

Ela, porém, não cita nomes. O advogado Marco Antonio Barbosa, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos, diz que a possibilidade de Marival ser convidado pela entidade será discutida em uma reunião na quarta-feira 25. E que o Ministério Público também estuda fazer o mesmo. Mas por que só agora? Ele explica que nunca se sabe se a pessoa contará tudo o que presenciou – justificativa não muito convincente. Por outro lado, há cerca de um ano e meio uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil, questionando a Lei de Anistia, aguarda entrar na pauta do Supremo Tribunal Federal. “Espera-se definir se torturadores são também anistiados e se a prescrição dos crimes ocorre ou não nesses casos”, diz o advogado. Enquanto isso, o governo federal tem recebido críticas em relação à campanha Memórias Reveladas, lançada em setembro nos meios de comunicação. O projeto pede aos brasileiros que doem documentos e passem informações da época do regime ao Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.

O grupo Tortura Nunca Mais duvida que apareça um conteúdo relevante. As famílias dos desaparecidos só têm material que investigaram por conta própria ou com ajuda de associações civis. A iniciativa seria apenas uma estratégia para evitar uma possível condenação do Brasil em processos sobre desaparecidos políticos e a não abertura completa dos arquivos no tribunal da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). A única certeza sobre parte tão sombria da nossa história é que muita dor foi provocada. O sofrimento permanece para muitos. E não terá fim até que toda a verdade apareça e os culpados paguem por sua crueldade.

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