Há tempos a família real britânica não surpreendia o mundo com um de seus escândalos. Desde a morte da princesa Diana, em 1997, as coisas andavam calmas no palácio de Buckingham. Calmas até demais para Henry Charles Albert David, o jovem Harry, 17 anos, filho caçula de Charles e Diana. Nas férias de verão, entre junho e julho do ano passado, o notável mancebo resolveu descontrair e, recluso na casa de campo real, em Highgrove, promoveu dezenas de festinhas para os amigos. Bebeu cerveja, vodca e tequila e, como se não bastasse, fumou maconha.

Ao voltar para casa, a verdade veio à tona. Um dos funcionários do príncipe sentiu o odor do fumacê de Harry e delatou o jovem ao pai. Charles agiu da forma que lhe parecia mais coerente. Conversou com o filho, culpou as companhias e encaminhou o garoto para uma visita forçada ao Centro de Reabilitação Featherstone Lodge, fundado pelo próprio Charles há três anos. O objetivo do herdeiro do trono inglês era dar um susto no filho. Diante de tantos internos em estado deplorável, acreditava ele, Harry compreenderia os malefícios das drogas.

O fato foi noticiado só agora pelo tablóide inglês The News of the World e causou grande repercussão. A atitude do príncipe foi recebida com louvor pelo primeiro ministro britânico, Tony Blair. “Ele abordou o assunto de maneira responsável e muito compreensiva em relação ao jovem”, elogiou. A imprensa britânica assumiu atitude semelhante. Em dezenas de artigos, atribuiu o adjetivo “brave” (corajoso) ao filho da rainha. Mas, para os principais especialistas brasileiros no assunto, tentar coibir os primeiros indícios de consumo de maconha assustando o jovem com a imagem da clínica para viciados é uma atitude condenável. O psiquiatra Arthur Guerra, diretor do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas de São Paulo, repudia a idéia do tratamento de choque. “O susto inibe a ação de imediato, mas a longo prazo não funciona”, diz. Para ele, pai zeloso não é aquele que amedronta os filhos, mas o que conversa com eles e, conhecendo-os bem, opta pela melhor forma de repreender e educar. “O diálogo não nascerá de uma hora para outra só por causa da presença das drogas”, completa o especialista.

Diálogo com os pais sempre foi algo supérfluo na vida de Harry. Terceiro na linha sucessória da realeza – atrás do pai e do irmão, William –, o garoto cultiva desde a infância a imagem de rebelde e problemático. Tanto que a mãe o considerava o travesso da família. “Exatamente como eu”, comparava. Depois da morte de Diana, quando o caçula tinha 13 anos, Charles dobrou a atenção sobre os filhos, principalmente sobre Harry. Mas, com os infinitos compromissos de um príncipe, não conseguiu dobrar a dose de diálogo.

Saber que toda conversa é importante, no entanto, pouco alivia o drama dos pais, que, ávidos por compreender o que se passa com seus filhos, são capazes de transformar um simples baseado em um Bicho de sete cabeças. Adaptado para o cinema pela diretora Laís Bodansky e batizado conforme a metáfora, o drama vivido pelo escritor Austregésilo Carrano é um triste exemplo do alcance da ignorância paterna e da leviandade da estrutura manicomial brasileira. “Aos 17 anos, meu pai me pegou fumando um baseado e, aconselhado por um amigo policial, me levou para a clínica do Bom Retiro, da Federação Espírita do Paraná. Fiquei três anos e meio internado, fui submetido a 21 sessões de eletrochoque e até hoje tenho sequelas físicas e psicológicas”, conta.

Depois de sair da clínica, o escritor, hoje com 44 anos, percebeu que seu drama não era fruto da maldade de seus pais, mas da ignorância da sociedade em relação às drogas. Isso levou Carrano a encabeçar o Movimento da Luta Antimanicomial, pela reforma psiquiátrica no Brasil, que, garante ele, envolve mais de 30 mil pessoas. “O quadro está melhorando, mas ainda tem muita gente dentro de manicômios sem a menor necessidade. A internação só é aconselhável quando o dependente coloca em risco físico sua vida ou a de outras pessoas”, ensina Carrano, que se tornou expert no assunto.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Entender se o adolescente é viciado ou faz uso esporádico de alguma droga pode ser a chave para o tratamento. Faltar às aulas, dormir e comer demais podem ser indícios de que o uso esporádico esteja se tornando frequente. A terapeuta Maísa (que prefere não se identificar) encorajou o marido e os três filhos a procurar uma terapia quando percebeu que o envolvimento do caçula com a maconha era intenso. “Os mais velhos já tinham dado sinais de que fumavam de vez em quando, mas isso não os atrapalhava. Com o Felipe foi diferente. Chegou a tirar zero numa prova porque não ia às aulas”, conta. As sessões de terapia têm sido aprovadas por Vitor, 23 anos, e Bel, 20, irmãos de Felipe, 18. “Desde que a mamãe percebeu que as coisas não iam bem, o clima em casa ficou tenso. Procurar ajuda foi o primeiro sinal de melhora”, diz Vitor.

Atitudes ponderadas como a da família de Maísa, entretanto, são raras. Na maioria das vezes os pais se desesperam quando percebem que seus filhos são usuários frequentes de drogas. Para a psiquiatra Sandra Scivoletto, responsável pelo Ambulatório de Adolescentes e Drogas do Hospital das Clínicas de São Paulo, esse desespero nasce justamente da falta de diálogo. “A sociedade tem reações malucas quando se fala em maconha, mas se esquece de que o consumo de álcool é o que mais cresce entre os jovens”, compara Sandra. Durante sete anos, a especialista acompanhou 180 adolescentes de 11 a 17 anos e constatou que, na última década, a idade média para se experimentar a primeira droga – lícita, como o álcool, ou ilícita – baixou de 14 para 11 anos.

Atualmente, é comum a moçada tomar seus primeiros porres aos 12 ou 13 anos. É o caso do carioca Alexandre Fonseca, 17 anos, que desde os 13 bebe regularmente. “Sempre andei com uma galera mais velha. Todo dia fumo pelo menos um baseado e bebo uma cerveja”, admite Fonseca. Acostumado a driblar a polícia, o jovem conversa abertamente sobre drogas com os pais. “Eles ficam tristes quando sabem que fumei ou bebi. O que é uma hipocrisia porque também fizeram isso quando jovens”, completa. Sandra Scivoletto acredita que o álcool, lícito e de fácil acesso, acaba sendo a primeira porta para outras drogas, e não a maconha, como se costuma dizer. O próprio príncipe Harry admitiu ao pai que bebe há muito mais tempo do que fuma. Segundo o tablóide The News of the World, o garoto deu seus primeiros goles aos 11 anos, numa viagem à Grécia com amigos. Além do álcool, as chamadas más companhias do pequeno herdeiro teriam sido, conforme afirmou a imprensa britânica, sua força motriz na entrada para o mundo das drogas.

Para os especialistas brasileiros, a turma de amigos é, muitas vezes, o principal fator de risco. Outro estudo conduzido pela psiquiatra Sandra Scivoletto aponta que aproximadamente 90% dos adolescentes experimentam drogas pela primeira vez para agir de acordo com a turma. É por essas e outras que muitos pais trocam seus filhos de escola assim que descobrem que fumaram o primeiro baseado. O que nem sempre é a melhor saída. A funcionária pública aposentada Lúcia (nome fictício) reconhece o erro, mas tomou essa atitude quando pegou sua filha Ana, hoje com 19 anos, fumando maconha aos 13. “Minha mãe ficou transtornada e não conversou comigo, apenas me trocou de escola. Perdi o ano e o interesse pelos estudos”, recorda Ana. A jovem ainda não concluiu o ensino médio e continua fumando, mesmo grávida de quatro meses. Lúcia achou que o envolvimento de Ana com a droga era passageiro e que aquela atitude resolveria. “Muitos pais cometem o mesmo erro, não dão a devida atenção aos filhos porque acham que é apenas uma fase”, lamenta.

A tese de doutorado da psicobióloga Denise De Micheli, da Universidade Federal de São Paulo, ajuda a compreender as circunstâncias do primeiro uso de entorpecentes. Entre usuários esporádicos, frequentes e dependentes químicos, Denise entrevistou 203 adolescentes de 11 a 19 anos e chegou à conclusão de que 86% dos dependentes graves experimentaram a droga em busca de prazer. “Já a maioria dos usuários esporádicos afirmou ter usado a droga por curiosidade”, comenta a psicobióloga. Quando isso acontece, o jovem tende a abandonar a substância rapidamente. Os pais devem atentar para o uso frequente do entorpecente. E, para detectar se esse é o caso, não adianta contar quantas vezes por semana, por exemplo, o jovem está fumando maconha. Cada organismo reage e se vicia de uma forma.

O psiquiatra Arthur Guerra afirma que o comportamento do adolescente é seu maior indicador. “Repare se seu filho está se desligando das atividades que antes lhe davam prazer e se, cada vez mais, se torna arredio e intolerante com as tarefas familiares”, ensina o especialista. Uma vez detectado o problema, é preciso pensar na melhor maneira de lidar com ele. Conforme lembra o psiquiatra Nacile Daud Jr., membro do Centro de Atenção Psicossocial de Fortaleza, o importante é que não haja nenhuma atitude autoritária ou policialesca para cima do dependente, pois isso mina o processo de tratamento. “Acompanhamentos psicológicos e psiquiátricos são muitas vezes necessários, mas, se o paciente não quiser melhorar e se mostrar avesso ao trato com o profissional, não surtirá efeito. A vontade de se tratar tem que partir dele”, diz. Usuário de maconha desde os 14 anos, o vendedor Mário Brandão, 20, conseguiu controlar seu vício ao entrar para a Igreja Presbiteriana e descobrir no montanhismo um novo hobby. Ele não parou de fumar, mas garante que as duas atividades e o cuidado com o filho de cinco anos o ajudam a ser comedido. “Não passo mais o dia inteiro chapado. Tenho outras prioridades”, afirma. Contrariando o modelo de educação que teve em casa, Mário promete estimular o diálogo com seu filho. “Jamais o levaria para uma clínica de recuperação, sem conversar direito com ele. Repressão não leva a nada. Já o carinho e a compreensão garantem uma vida mais saudável”, ensina.

As razões do uso

“Não se deve passar para o jovem a idéia de que o álcool é uma ferramenta para ajudar a superar um problema”
Denise De Micheli, psicobióloga

Com o objetivo de entender o que leva um jovem a experimentar drogas e álcool, a psicobióloga Denise De Micheli, da Universidade Federal de São Paulo, estudou 203 adolescentes de classe média, entre 11 e 19 anos. A pesquisa, que resultou em sua tese de doutorado, concluída no ano passado, comprovou a importância do grupo e da família no comportamento do jovem.

ISTOÉ – Quais as razões do uso inicial da droga?
Denise De Micheli – Na pesquisa, dividimos os 203 jovens em três grupos: não dependentes (fazem uso ocasional), dependentes leves (começam a abandonar atividades rotineiras para se drogar) e graves (vivem mais para a droga e têm síndrome de abstinência). Dos dependentes graves, 86% deles mencionaram que usaram em busca de prazer e 42% para enfrentar situações desagradáveis. Dos não-dependentes, a maioria afirmou ter usado pela primeira vez por curiosidade. Nesse sentido, o vínculo que o dependente grave estabelece com a droga, seja ela lícita ou ilícita, é muito diferente do que o jovem que faz um uso experimental, por curiosidade.

ISTOÉ – Por quê?
Denise – A maior parte dos dependentes tanto leves quanto graves apresentava um histórico de problemas de drogas na família. Viam os pais usando e aprendiam o comportamento. De 8% a 10% dos não-dependentes tinham pais que faziam uso problemático de álcool e drogas, enquanto no grupo dos dependentes graves, cerca de 50% tinham pais que faziam uso problemático.


ISTOÉ – Mas então não se pode beber perto de uma criança?
Denise – Pode beber. O que não se deve fazer é passar para o filho a idéia de que o álcool é uma boa ferramenta para ajudar a superar um problema. Chegar em casa irritado e tomar um uísque para relaxar, por exemplo, não é uma boa idéia. A criança aprende que, quando não estiver bem, pode usar fatores externos para aliviar a dor.

ISTOÉ – Por que algumas pessoas se viciam e outras não?
Denise – Isso é explicado por três fatores: biológico, psicológico e o social. Em nosso estudo, o grupo dos dependentes graves foi mais prevalente em traumas como agressão, abuso sexual e conflitos familiares. Os dependentes leves tinham pouca coisa registrada e os não-dependentes quase nada. Isso sugere uma razão para a perpetuação do vício. Satisfeita a curiosidade, o que mantém o uso é a história de vida de cada um.

ISTOÉ – O uso de drogas também está ligado a auto-estima?
Denise – Sim. Vários estudos mostram a associação entre a baixa auto-estima e o uso de drogas, principalmente entre os adolescentes. E isso não está ligado só à família. O grupo influencia a personalidade do jovem também.
 

 

Maconha na lancheira
Vigilância acirrada. De agora em diante, é esta a promessa do diretor do colégio de Harry, John Lewis. Na semana passada, ele acenou com a possibilidade de exigir exames de urina periódicos do príncipe e de seus colegas. “Qualquer aluno que possua, use ou venda drogas na escola será expulso”, garantiu John Lewis. Sua postura encontra eco na conduta de muitas instituições brasileiras de ensino – inclusive entre as mais liberais. No final de novembro, a escola Vera Cruz, de São Paulo, expulsou dois garotos da oitava série flagrados enquanto enrolavam um baseado na quadra de esportes. “Se alguns pais são permissivos, nós não somos”, justificou a diretora de ensino fundamental Stella Mercadante. Mais rigorosa foi a Escola-Parque, no Rio de Janeiro, que expulsou quatro alunos em janeiro de 2001 por terem fumado maconha em uma viagem a Ouro Preto, em Minas Gerais. Famosa por manter entre suas carteiras alunos ilustres como as netas do presidente Fernando Henrique, a instituição não suavizou a pena, apesar de o flagrante ter ocorrido a 500 quilômetros da escola. Os alunos protestaram para tentar reverter o decreto. “Meu filho assumiu ter fumado por confiar na abertura do colégio para o diálogo”, declarou indignada uma das mães. “Lei é lei e deve ser cumprida”, fincou pé a diretora, Patrícia Lins e Silva.

 


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias