Hélcio Nagamine

"O apoio dos amigos e a raiva por estar naquela
situação me impulsionaram a viver " Kristie Hanbury,
ex-modelo e jogadora de pólo"

Quando se bate no fundo do poço, o feito de voltar à superfície, no ponto exato em que se encontrava antes, já é grandioso e digno de aplausos. Mas os protagonistas desta reportagem – e milhões de pessoas no Brasil e no mundo – foram além. Muito além. Nocauteados por um desses graves reveses que atravessam o destino, eles enfrentaram a desilusão profunda e a paralisia gerada pela quase total falta de perspectiva. Mas voltaram. Deram a volta por cima. Ressurgiram, em todos os aspectos, melhores do que eram. A ex-modelo Kristie Hanbury, o jogador de futebol William Fernando da Silva, o escritor Luiz Mendes, o economista Pedro Paulo Drummond e a advogada Andréia Mara Vicente Haz são exemplos acabados de um fenômeno estudado recentemente por psicanalistas, psicólogos e teóricos sociais: a capacidade acima da média de recuperação individual. Os analistas – e a sociedade – querem entender como muitos conseguem reunir forças quando tudo parece perdido, reinventar a própria vida e construir uma realidade mais animadora do que a surgida nos melhores planos anteriores. O processo, a um só tempo curioso e encantador, é capaz de produzir lições para melhorar a vida do restante das pessoas.

É oportuno observar, por exemplo, a trajetória da jogadora de pólo e ex-modelo carioca Kristie Hanbury, 39 anos. Seu caso, raríssimo, é de alguém que conseguiu recuperar todos os movimentos do corpo após ter se tornado tetraplégica. Aos 17 anos, o destino despencou em sua cabeça junto com a porta de um local em que ela acabara de acompanhar uma exposição de quadros. Socorrida pelos amigos, foi levada a um hospital para receber o veredicto arrasador: não andaria mais. Deslocamento sério da coluna cervical, edema cerebral e algumas vértebras quebradas.

Sem condições de mexer nada da cabeça para baixo, ela escorou-se inicialmente nos amigos, que se revezavam ao seu lado para evitar os momentos de depressão. Reforçou a auto-estima e determinação e, “com muita raiva da situação”, iniciou o seu longo caminho de volta à luz (leia quadros com as histórias da ex-modelo e dos outros personagens). Hoje, Kristie, bela e incansável, anda normalmente, divide seu tempo entre alguns projetos sociais e também cavalga, uma paixão descoberta nas viagens com o companheiro, o inglês Tobias Hanbury. Ainda tem muito o que ajudar a escrever na história do esporte por aqui, mas um feito importante já brilha em seu currículo. Ela é a criadora do primeiro time de pólo feminino do País.

Os pesquisadores descobriram nos últimos anos que capacidades de superação acima da média, como a exibida por Kristie, estão diretamente ligadas a um sentimento fundamental: a auto-estima. O médico psiquiatra e psicanalista brasileiro Luiz Alberto Py identificou em seus estudos e clínicas como essa relação se estabelece. Em linhas simples, ele define auto-estima como a capacidade de o ser humano amar a si próprio. É a versão pessoal do amor que todo mundo conhece e dedica ao outro, seja ele o filho, o pai, a mãe ou a mulher. Com o passar dos anos, a auto-estima é corroída por dois fatores básicos. O primeiro, externo, são as cobranças sociais a que todo mundo está submetido. O segundo, individual, são as características psicológicas que fazem uma pessoa ter maior ou menor capacidade de manter o amor próprio.

A exemplo do sentimento que se direciona aos filhos, a auto-estima, sustenta Py, deveria ser a manifestação de um amor incondicional. “A não ser que o seu menino tome uma atitude fora dos limites da aceitação humana, você o amará sempre, seja ele um gênio da raça ou um malandro, um modelo de comportamento ou um viciado em droga”, explica. Com a auto-estima, o afeto que dedicamos a nós mesmos, também deveria ser assim. A tese é a seguinte: um ser humano não precisa de julgamentos positivos da sociedade para convencer a si mesmo de que precisa se amar. Ele deve se gostar simplesmente porque toda forma de afeto é incondicional. E, afinal de contas, o objeto deste afeto – ou desta auto-estima – é ele próprio.

E onde entram, então, a superação, as conquistas e a virada neste processo? Na teoria de Py – em parte detalhada no seu mais recente livro, Saber amar –, um bom número de pessoas, quando sofre um grande revés, consegue finalmente se livrar do peso das cobranças sociais. E, aí, traça um caminho de recuperação com naturalidade e segurança bem maiores do que as mostradas antes de viver o problema. “Quem não tem nada também não tem nada a perder. No fundo do poço, há duas saídas: morrer, no sentido real ou no simbólico, ou recuperar totalmente a auto-estima e partir para uma nova vida”, resume o psicanalista.

Por isso, muitos conseguem resultados surpreendentes – e literalmente dão a volta por cima. O troco na vida dado pelo paulista Luiz Mendes ilustra de forma exemplar a seqüência de fenômenos psicológicos e sociais identificada por Luiz Alberto Py. Condenado a 74 anos de prisão, por homicídio e assalto à mão armada, Mendes passou 31 anos e dez meses na prisão. Semi-analfabeto, aprendeu a ler e a escrever melhor, conheceu e devorou a obra de vários escritores importantes e ajudou a implementar cursos de alfabetização em várias penitenciárias. Tudo na cadeia. Hoje, além de escritor de sucesso e dramaturgo, mantém uma coluna numa importante revista mensal. “Diante das circunstâncias que envolveram sua vida, é quase impossível imaginá-lo promovendo uma mudança de postura, de educação e de rumo tão radical quanto a que realizou. Ele encontrou forças no auge do sofrimento porque teve coragem de definir as metas que efetivamente poderiam fazê-lo feliz”, analisa Py. Mendes concorda: “Era um animal da pilantragem. Na prisão, aprendi a ser uma pessoa mais sensível e a ter compaixão.”

Outro estudioso interessado no tema, o psicoterapeuta Flávio Gikovate, destaca que a capacidade especial de algumas pessoas de reagir com maior determinação nos momentos difíceis começou a despertar o interesse dos pesquisadores depois dos resultados de uma longa pesquisa concluída há 20 anos nos Estados Unidos. O objetivo dos estudiosos, curiosamente, não estava relacionado ao tema. Inicialmente, eles queriam descobrir até que ponto os filhos de mães esquizofrênicas tinham chance de desenvolver a doença. A maior parcela não foi afetada pelo mal. Mas o que surpreendeu os especialistas foram os 15% do total de crianças que simplesmente passaram a ter resultados positivos acima da média e a superar as dificuldades com determinação e segurança maiores do que as dos colegas. Por isso, eles foram chamados pelos autores do estudo de superkids (as supercrianças), um termo que jamais deixou de ser relacionado às investigações sobre a capacidade individual de superação.

Não são poucos os casos célebres de superação. O inglês Stephen Hawking começou a sentir os efeitos de uma doença neuronal degenerativa aos 21 anos. Hoje, ela paralisa praticamente seu corpo inteiro. Mas isso não o impediu de ser considerado o maior físico teórico depois de Albert Einstein. E nem de escrever duas obras-primas que traduzem para os mortais comuns parte de seu sofisticado pensamento científico: Uma breve história do tempo e O universo numa casca de noz. Filho de pai alcoólatra, o alemão Ludwig Van Beethoven encontrou a surdez quando havia composto metade de sua obra. Mesmo assim, compôs e, em algumas ocasiões, ajudou a reger a peça que iria mudar os rumos da música: a Nona Sinfonia. Os sons estavam dentro dele – e ele estava completamente surdo. “Essas pessoas, sejam elas gênios, superkids ou cidadãos comuns, infelizmente não são maioria no mundo”, alerta Gikovate. “A maior parte fica paralisada diante das grandes frustrações.” Como os problemas, incluindo aqueles capazes de levar qualquer um à lona, são inevitáveis, uma parte não consegue se levantar. Gikovate identifica quatro ensinamentos básicos retirados de quem dá a volta por cima e passa a viver melhor: “Boa tolerância contra a frustração, falta de disposição para ficar reclamando da vida e disciplina para buscar o objetivo.” E a quarta? “Podemos tirar ensinamentos dessas três. A última é o imponderável, aquele elemento ainda não explicado pelos estudiosos que torna as pessoas diferentes.” Neste aspecto, a ciência precisa caminhar sem medo. Como os personagens desta reportagem.
 

ELES DERAM A VOLTA POR CIMA
 
Arquivo Pessoal 

Da paralisia aos jogos de pólo
“A ex-modelo carioca Kristie Hanbury tinha apenas 17 anos quando soube que não andaria mais. Ao notar um edema cerebral, o neurologista Aderbal Maia resolveu encaminhá-la para o Hughston Orthopedic Hospital, nos Estados Unidos. Ela chegou de cadeira de rodas, mas mostrou obstinação em voltar a andar. “Vou morrer tentando”, dizia. Acostumada a não aceitar ajuda de ninguém, foi humilhada em um episódio. O fisioterapeuta Bill Hutchinson, ex-paralítico, jogou-a no chão. Aos prantos, ela ficou imóvel por mais de uma hora. E, ao ser levantada pelo próprio fisioterapeuta, arrastou-se pelo salão até sangrar as mãos. Hutchinson ficou tão impressionado com sua obstinação que fez dela uma causa pessoal. A ex-atleta passou a trabalhar 16 horas por dia. Depois de um ano e meio, deixou o hospital e seguiu para Nova York, onde retomou a carreira de modelo. Mas sofreu outro baque: um câncer de mama, que a trouxe de volta ao Brasil. “A juventude, o passado de atleta, a determinação e o apoio emocional me favoreceram.”

André Duraodivulgação
"Deus e o doutor Ghorayeb salvaram a minha carreira" William, jogador de futebol do Palmeiras

“Não valeria viver sem o futebol”
“No início de 2004, o doutor Nabil Ghorayeb, um dos maiores especialistas em cardiologia aplicada ao esporte no País, ouviu aquela que talvez seja a frase mais temida por um médico. “Doutor, não vale a pena viver se eu não conseguir voltar ao futebol.” O grito desesperado saiu da alma de William Fernando da Silva, 20 anos, meio-campista do Palmeiras. Aos 17, o menino pobre nascido na zona leste de São Paulo foi informado de que não poderia mais jogar futebol. Uma virose mal curada causou um sério distúrbio no lado esquerdo de seu coração, um problema que traz riscos sérios até para quem não faz o esforço de um atleta profissional. Desenganado por cinco médicos, William pensava em largar tudo quando o doutor Ghorayeb apareceu em sua vida. Após dois anos de tratamento, o jogador recebeu a melhor notícia de sua vida: estava curado. “Deus e o doutor Ghorayeb salvaram minha carreira”, diz o garoto. Ghorayeb sabe exatamente como ele pode retribuir. “Só quero pedir um favor. Que ele não marque gols contra o meu Corinthians”, brinca o médico, torcedor do arqui-rival Palmeiras de William.

Max G Pinto 
"Apesar de tudo o que passei, jamais pensei em desistir" Andréia Haz, advogada 

Um drinque no caminho
  Um drinque de vodca com água de coco provocou o maior baque da vida da advogada Andréia Mara Vicente Haz, 35 anos. Feita em fundo de quintal, a bebida estava contaminada com metanol. Depois de 12 dias na UTI e inúmeros testes, lhe deram a notícia de que ela não voltaria a enxergar. Com o sistema nervoso central comprometido aos 21 anos, ela ficou sem falar e sem andar por alguns meses e foi aconselhada a trancar a matrícula no quarto ano da faculdade. A jovem preferiu seguir em frente. Os colegas gravavam as aulas e liam os textos em voz alta para ela. A perseverança foi tal que Andréia conseguiu se formar. “Tive de trabalhar de graça até mostrar que era competente”, conta. “Apesar de tudo o que passei, jamais pensei em desistir. Me espelhei em minha mãe, que, mesmo viúva, conseguiu criar dois filhos.” Hoje, a advogada tem seu próprio escritório e é casada com um advogado.

 
Max G Pinto 
"Sofri, mas aprendi com os reveses e me tornei um homem melhor" Pedro Paulo Drummond, empresário 

“A saída é andar com as próprias pernas”
“Pedro Paulo Drummond, o Pepê, 47 anos, viu o futuro ruir quando seu pai, em dificuldades, fechou a construtora da família. Aos 21 anos, teve de aprender a andar com as próprias pernas. Após estudar economia, começou como vendedor perambulando pelo comércio de Belo Horizonte com uma balança e pedaços de tecido. Em 1990, montou uma confecção. Anos depois, abriu a Cia do Terno, especializada em roupas para as classes B e C. Foi o golpe de mestre. Na semana passada, Pepê assinou um contrato para a abertura da 70ª loja da rede, no Rio de Janeiro. “Sofri, mas aprendi com os reveses e me tornei um homem melhor.” Com 620 funcionários, ele credita o sucesso à união familiar e a uma idéia prosaica: “Convencer o empregado de que, com pouco, ele pode se vestir como o chefe”, simplifica.

Max G Pinto 
"Era um animal da pilantragem. Aprendi a ser sensível na prisão" Luiz Mendes, escritor 

Memórias do cárcere
  O paulista Luiz Mendes ficou 31 anos e dez meses preso. Aos 19, foi condenado a 74 anos de prisão por homicídio e assalto a mão armada. Entrou na penitenciária semi-analfabeto, mas estudou, conheceu a obra de escritores importantes e organizou cursos para detentos. Na saída, recomeçou do zero. “Não sabia nada, de comprar roupa a usar cartão de banco.” Além disso, sofria com os preconceitos contra ex-presidiários. Mendes contou com o apoio da mãe de seus filhos Renato, 12 anos, e Jorlan, oito. “O meu maior orgulho foi ouvir de um deles: ‘Papai, quero ser escritor como você.’” Hoje, ele tem três livros publicados (Memórias de um sobrevivente, Tesão e prazer e Às cegas), escreve peças de teatro e é colunista de uma revista.