28/02/2007 - 10:00
"O apoio dos amigos e a raiva por estar naquela
situação me impulsionaram a viver " Kristie Hanbury,
ex-modelo e jogadora de pólo"
Quando se bate no fundo do poço, o feito de voltar à superfície, no ponto exato em que se encontrava antes, já é grandioso e digno de aplausos. Mas os protagonistas desta reportagem – e milhões de pessoas no Brasil e no mundo – foram além. Muito além. Nocauteados por um desses graves reveses que atravessam o destino, eles enfrentaram a desilusão profunda e a paralisia gerada pela quase total falta de perspectiva. Mas voltaram. Deram a volta por cima. Ressurgiram, em todos os aspectos, melhores do que eram. A ex-modelo Kristie Hanbury, o jogador de futebol William Fernando da Silva, o escritor Luiz Mendes, o economista Pedro Paulo Drummond e a advogada Andréia Mara Vicente Haz são exemplos acabados de um fenômeno estudado recentemente por psicanalistas, psicólogos e teóricos sociais: a capacidade acima da média de recuperação individual. Os analistas – e a sociedade – querem entender como muitos conseguem reunir forças quando tudo parece perdido, reinventar a própria vida e construir uma realidade mais animadora do que a surgida nos melhores planos anteriores. O processo, a um só tempo curioso e encantador, é capaz de produzir lições para melhorar a vida do restante das pessoas.
É oportuno observar, por exemplo, a trajetória da jogadora de pólo e ex-modelo carioca Kristie Hanbury, 39 anos. Seu caso, raríssimo, é de alguém que conseguiu recuperar todos os movimentos do corpo após ter se tornado tetraplégica. Aos 17 anos, o destino despencou em sua cabeça junto com a porta de um local em que ela acabara de acompanhar uma exposição de quadros. Socorrida pelos amigos, foi levada a um hospital para receber o veredicto arrasador: não andaria mais. Deslocamento sério da coluna cervical, edema cerebral e algumas vértebras quebradas.
Sem condições de mexer nada da cabeça para baixo, ela escorou-se inicialmente nos amigos, que se revezavam ao seu lado para evitar os momentos de depressão. Reforçou a auto-estima e determinação e, “com muita raiva da situação”, iniciou o seu longo caminho de volta à luz (leia quadros com as histórias da ex-modelo e dos outros personagens). Hoje, Kristie, bela e incansável, anda normalmente, divide seu tempo entre alguns projetos sociais e também cavalga, uma paixão descoberta nas viagens com o companheiro, o inglês Tobias Hanbury. Ainda tem muito o que ajudar a escrever na história do esporte por aqui, mas um feito importante já brilha em seu currículo. Ela é a criadora do primeiro time de pólo feminino do País.
Os pesquisadores descobriram nos últimos anos que capacidades de superação acima da média, como a exibida por Kristie, estão diretamente ligadas a um sentimento fundamental: a auto-estima. O médico psiquiatra e psicanalista brasileiro Luiz Alberto Py identificou em seus estudos e clínicas como essa relação se estabelece. Em linhas simples, ele define auto-estima como a capacidade de o ser humano amar a si próprio. É a versão pessoal do amor que todo mundo conhece e dedica ao outro, seja ele o filho, o pai, a mãe ou a mulher. Com o passar dos anos, a auto-estima é corroída por dois fatores básicos. O primeiro, externo, são as cobranças sociais a que todo mundo está submetido. O segundo, individual, são as características psicológicas que fazem uma pessoa ter maior ou menor capacidade de manter o amor próprio.
A exemplo do sentimento que se direciona aos filhos, a auto-estima, sustenta Py, deveria ser a manifestação de um amor incondicional. “A não ser que o seu menino tome uma atitude fora dos limites da aceitação humana, você o amará sempre, seja ele um gênio da raça ou um malandro, um modelo de comportamento ou um viciado em droga”, explica. Com a auto-estima, o afeto que dedicamos a nós mesmos, também deveria ser assim. A tese é a seguinte: um ser humano não precisa de julgamentos positivos da sociedade para convencer a si mesmo de que precisa se amar. Ele deve se gostar simplesmente porque toda forma de afeto é incondicional. E, afinal de contas, o objeto deste afeto – ou desta auto-estima – é ele próprio.
E onde entram, então, a superação, as conquistas e a virada neste processo? Na teoria de Py – em parte detalhada no seu mais recente livro, Saber amar –, um bom número de pessoas, quando sofre um grande revés, consegue finalmente se livrar do peso das cobranças sociais. E, aí, traça um caminho de recuperação com naturalidade e segurança bem maiores do que as mostradas antes de viver o problema. “Quem não tem nada também não tem nada a perder. No fundo do poço, há duas saídas: morrer, no sentido real ou no simbólico, ou recuperar totalmente a auto-estima e partir para uma nova vida”, resume o psicanalista.
Por isso, muitos conseguem resultados surpreendentes – e literalmente dão a volta por cima. O troco na vida dado pelo paulista Luiz Mendes ilustra de forma exemplar a seqüência de fenômenos psicológicos e sociais identificada por Luiz Alberto Py. Condenado a 74 anos de prisão, por homicídio e assalto à mão armada, Mendes passou 31 anos e dez meses na prisão. Semi-analfabeto, aprendeu a ler e a escrever melhor, conheceu e devorou a obra de vários escritores importantes e ajudou a implementar cursos de alfabetização em várias penitenciárias. Tudo na cadeia. Hoje, além de escritor de sucesso e dramaturgo, mantém uma coluna numa importante revista mensal. “Diante das circunstâncias que envolveram sua vida, é quase impossível imaginá-lo promovendo uma mudança de postura, de educação e de rumo tão radical quanto a que realizou. Ele encontrou forças no auge do sofrimento porque teve coragem de definir as metas que efetivamente poderiam fazê-lo feliz”, analisa Py. Mendes concorda: “Era um animal da pilantragem. Na prisão, aprendi a ser uma pessoa mais sensível e a ter compaixão.”
Outro estudioso interessado no tema, o psicoterapeuta Flávio Gikovate, destaca que a capacidade especial de algumas pessoas de reagir com maior determinação nos momentos difíceis começou a despertar o interesse dos pesquisadores depois dos resultados de uma longa pesquisa concluída há 20 anos nos Estados Unidos. O objetivo dos estudiosos, curiosamente, não estava relacionado ao tema. Inicialmente, eles queriam descobrir até que ponto os filhos de mães esquizofrênicas tinham chance de desenvolver a doença. A maior parcela não foi afetada pelo mal. Mas o que surpreendeu os especialistas foram os 15% do total de crianças que simplesmente passaram a ter resultados positivos acima da média e a superar as dificuldades com determinação e segurança maiores do que as dos colegas. Por isso, eles foram chamados pelos autores do estudo de superkids (as supercrianças), um termo que jamais deixou de ser relacionado às investigações sobre a capacidade individual de superação.
Não são poucos os casos célebres de superação. O inglês Stephen Hawking começou a sentir os efeitos de uma doença neuronal degenerativa aos 21 anos. Hoje, ela paralisa praticamente seu corpo inteiro. Mas isso não o impediu de ser considerado o maior físico teórico depois de Albert Einstein. E nem de escrever duas obras-primas que traduzem para os mortais comuns parte de seu sofisticado pensamento científico: Uma breve história do tempo e O universo numa casca de noz. Filho de pai alcoólatra, o alemão Ludwig Van Beethoven encontrou a surdez quando havia composto metade de sua obra. Mesmo assim, compôs e, em algumas ocasiões, ajudou a reger a peça que iria mudar os rumos da música: a Nona Sinfonia. Os sons estavam dentro dele – e ele estava completamente surdo. “Essas pessoas, sejam elas gênios, superkids ou cidadãos comuns, infelizmente não são maioria no mundo”, alerta Gikovate. “A maior parte fica paralisada diante das grandes frustrações.” Como os problemas, incluindo aqueles capazes de levar qualquer um à lona, são inevitáveis, uma parte não consegue se levantar. Gikovate identifica quatro ensinamentos básicos retirados de quem dá a volta por cima e passa a viver melhor: “Boa tolerância contra a frustração, falta de disposição para ficar reclamando da vida e disciplina para buscar o objetivo.” E a quarta? “Podemos tirar ensinamentos dessas três. A última é o imponderável, aquele elemento ainda não explicado pelos estudiosos que torna as pessoas diferentes.” Neste aspecto, a ciência precisa caminhar sem medo. Como os personagens desta reportagem.
ELES DERAM A VOLTA POR CIMA |
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