Este sonho fez com que Helio Mattar trocasse uma carreira bem-sucedida de executivo e empresário para trabalhar pelo social

Helio Mattar, 55 anos, é um legítimo
empresário social. Bem-sucedido – foi dono
da rede de restaurantes América, tem 50%
da rede Arábia, presta consultoria a uma empresa –, nunca tirou os olhos do que ele chama de agenda social e ambiental. Mattar deixou uma carreira bem-sucedida de
executivo e empresário para servir voluntariamente à Fundação Abrinq Pelos Direitos da Criança e do Adolescente e
ao Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, dos quais é presidente, e ao Instituto Ethos
de Empresas e Responsabilidade Social, organizações não-governamentais Consolidadas, inclusive no Exterior. Ele
põe os pés em 2003 com otimismo. E a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva tem muito a ver com esse estado de ânimo. Lula significa mudança e isso é tudo o que Mattar quer. A maior delas é uma revolução: reduzir a soberania do financeiro em favor do social.

Uma utopia? “É utópico, mas é uma transformação que seremos obrigados a construir.” Nosso ato de consumir, ele acredita, vai se transformar num ato político. “Se um milhão de pessoas escovassem
os dentes por um mês com a torneira fechada, o País economizaria quatro minutos da água que corre nas cataratas de Iguaçu.” Ele
escova os dentes com a torneira fechada, ouve muita música, toca
piano e não gosta de sair de casa. É casado pela terceira vez, com Cristina, que mora – entre aspas – num apartamento perto do dele,
em Higienópolis, em São Paulo (“na verdade”, ele diz, “ela tem um guarda-roupa lá”). Tem três filhos – Laura, 25 anos, e os gêmeos
Ricardo e Fernando, 18 – e vive em busca do equilíbrio para si e para
o País. Nesta entrevista a ISTOÉ, Hélio Mattar celebra a vitória de
Lula como uma das utopias que se transformaram em realidade.

ISTOÉ – Quais as suas expectativas em relação a 2003?
Helio Mattar

Será um ano de construção. Ainda estaremos sob o reflexo de uma situação internacional difícil e com a inflação ameaçando. Mas é um governo que traz a sociedade para perto, para construir junto. Estou otimista com o que vamos viver, pois será um aprendizado. Acho que o governo FHC consolidou a democratização da sociedade, que será fortalecida com a participação dela no futuro governo.

ISTOÉ – O sr. acha que com o governo Lula a questão da responsabilidade social das empresas irá se expandir?
Helio Mattar

Em primeiro lugar, não tenho dúvida de que o governo Lula é uma oportunidade de que se estabeleça uma relação público-privada como o Brasil nunca teve oportunidade de ver. E aí eu reporto concretamente a um momento em que o Lula, então candidato, assinou com a Fundação Abrinq o termo de compromisso de Presidente Amigo da Criança, um conjunto de compromissos que leva a metas desafiadoras e a um orçamento consequente. Esse programa que ele irá estabelecer terá de ser discutido e acompanhado pela sociedade por uma articulação que a Fundação Abrinq irá fazer. Quando eu disse que a sociedade iria acompanhá-lo, a resposta imediata foi dele: “Não estou preocupado com o acompanhamento da sociedade, mas quero saber se essa sociedade vai ser co-responsável por aquilo que iremos desenvolver.”

ISTOÉ – A sociedade irá responder?
Helio Mattar

Acho que sim. Estamos articulando um conjunto de organizações não-governamentais para fazer não apenas a
apreciação do programa de ação que o governo irá nos propor
na área de criança e adolescente, mas também um acompanhamento posterior da evolução das metas e das atividades. Essa é a co-responsabilidade, no sentido de dar subsídios ao governo para
que ele elabore o plano, faça uma apreciação crítica, que termina
sendo, em última instância, um plano que terá de ser aprovado
no Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), instância paritária entre o governo e a sociedade.

ISTOÉ – De que maneira o governo Lula, que tem a sociedade como parceira, conseguirá levá-la para dentro do jogo?
Helio Mattar

O fato de estruturar um conselho de desenvolvimento econômico e social para que as principais questões venham a ser debatidas com a sociedade me parece um indicador promissor. O fato de o ministro Furlan (Luiz Fernando Furlan) me ligar um dia depois de sua indicação, perguntando se poderíamos sentar para contar o que fiz durante o período em que estive no governo (entre 1999 e 2000, na Secretaria de Desenvolvimento da Produção), é uma outra boa indicação.

ISTOÉ – O que o sr. pretende dizer ao ministro Furlan?
Helio Mattar

Na secretaria propus ao governo o chamado fórum de competitividade, que trabalhava as cadeias produtivas em 11 segmentos escolhidos por um estudo que privilegiava geração de empregos, geração de exportação, substituição competitiva de importações e regionalização da produção. Essas cadeias produtivas foram estudadas extensivamente porque o que se queria é que se gerasse no final um contrato de competitividade entre o setor público e o privado. Aconteceu no
setor têxtil agora em setembro, mas na minha visão não havia vontade política no governo FHC de desenvolver este espaço de cooperação.
A visão era liberal, com características exacerbadas, a meu ver. E
nesse sentido não havia disposição de considerar o fato de que as empresas brasileiras competem em desigualdade de condições em
relação ao setor produtivo internacional. Tive uma conversa com o presidente na qual falei que o empresariado solicitava não subsídios
e incentivos, mas igualdade de condições para competir. Ele ouviu e apoiou a existência dos fóruns de competitividade, mas, na prática,
as propostas que começavam a nascer não foram levadas adiante.

ISTOÉ – Mas essas propostas podem renascer no novo governo…
Helio Mattar

Sem dúvida. São propostas que vão desde incentivos voltados para a atração de determinados investimentos internacionais, passando pelo aumento de recursos para financiamento da exportação com taxa
de juros equalizadas às internacionais, até questões de impostos, como em máquinas e equipamentos, já que o Brasil é um dos poucos países
do mundo que taxam bens de produção. Além da simplificação de procedimentos de importação e exportação e apoio a pequenas e médias empresas. Outra área importante é a de tecnologia, na qual é preciso desenvolvimento em áreas onde o Brasil tem potencial competitivo.

ISTOÉ – Ou seja, é pensar no futuro?
Helio Mattar

Isso é muito importante. Não temos uma visão de futuro
do que queremos para o setor produtivo daqui a 20 anos, ou seja,
do que queremos ser quando crescermos. Eu queria ter mobilizado
um grande estudo para desenvolver essa visão. A comunidade
européia fez isso, analisando 30 anos para a frente, identificando
as principais oportunidades e ameaças e definindo linhas estratégicas
de ação. Estou confiante de que o novo governo irá fazê-lo.

ISTOÉ – A responsabilidade social ajuda a empresa a crescer?
Helio Mattar

Tem um caso extraordinário de uma empresa americana de sucos, muito pequena, mas com forte integração à comunidade, que atendia principalmente a escolas. E aí, numa ocasião, uma menina de uma dessas escolas morreu por envenenamento alimentar. Começaram
a pesquisar o que tinha acontecido, e a empresa, ela própria, levantou
a hipótese de que isso poderia ter sido causado por um de seus produtos, sem que ninguém tivesse apontado o dedo para ela. Ela levantou a hipótese, fez a verificação e descobriu que havia um
lote contaminado. A empresa, que tinha uma rede de afetividade desenvolvida e a confiança das pessoas, primeiro chamou a comunidade para ajudar a recolher o produto, o que foi feito em tempo recorde. Depois pediu desculpas, explicou o que tinha acontecido e mostrou
que tinha corrigido o problema. Resultado: a empresa local de dez
anos atrás tornou-se uma empresa nacional. O importante, muitas
vezes, não é tanto se a empresa cometeu ou não uma falha, mas
o que ela faz com essa falha, aquilo que se carateriza como ética empresarial. Isto é, qual a intenção que de fato a empresa tem.

ISTOÉ – O consumidor está mais sensível a fatores sociais?
Helio Mattar

Com certeza. Mão-de-obra infantil é um exemplo. A Nike em 1995 teve o preço de suas ações reduzido pela metade em uma semana pela denúncia do uso de mão-de-obra infantil no Paquistão. Se um dia antes de ocorrer a denúncia da Nike alguém dissesse que a empresa iria sofrer uma queda de metade do valor de suas ações por uma questão de responsabilidade social, ninguém iria acreditar. Aqui no Brasil não se sabe bem onde está a sensibilidade do consumidor, mas sabe-se que ele quer que as grandes empresas se envolvam ativamente com o social.

ISTOÉ – As empresas também estão mais sensíveis?
Helio Mattar

Claramente, a responsabilidade das empresas vem se aprofundando. Prova disso é que o Instituto Ethos tem 700 associados.
O Akatu está sendo apoiado por empresas para que o consumidor desenvolva uma consciência e valorize a responsabilidade social.
Que razão haveria para que empresas apoiassem um esforço de
consumo consciente, não fosse o fato de que elas apostam na responsabilidade social como fator de diferenciação em um mercado
cada vez mais competitivo? O caminho da responsabilidade social
também traz repercussões para dentro das empresas, criando uma
ética social que motiva os funcionários, que faz com que eles se
sintam mais participantes do processo da empresa, voltado não
somente para a geração de lucro, mas também para a contribuição social. Estou convencido de que as empresas estão mudando seu
papel, tornando-se agentes sociais, interagindo com as ONGs
e com o governo na direção de uma sociedade mais saudável.

ISTOÉ – Algumas empresas financiam projetos sociais, patrocinam atletas, mas ao mesmo tempo acabam com a natureza. Não é marketing?
Helio Mattar

As empresas estão num aquário global. Tudo o que elas fizerem será transparente, porque os funcionários vão contar, os fornecedores vão contar, a comunidade, o sindicato e a mídia repercutem. Dado que as empresas estão vivendo neste aquário, aquelas que acharem que podem ficar fazendo apenas um marketing estão enganadas porque a transparência com os diversos públicos com que elas se relacionam vai revelar crenças, valores e princípios que elas efetivamente têm e são refletidos em sua prática cotidiana. Não vão ser avaliadas por seu discurso e muito menos por ações pontuais que possam fazer.

ISTOÉ – O sr. fala que a responsabilidade social representa uma mudança de paradigma. O que é essa mudança?
Helio Mattar

A grande mudança é sair da época do paradigma do produto e entrar na época do paradigma das relações – com funcionários, fornecedores, consumidores, meio ambiente, comunidade, governo, concorrentes, sindicatos e a sociedade. Isso tem muito a evoluir em todas as partes do mundo. A empresa subordinada exclusivamente a uma lógica financeira que exige o maior lucro possível no menor espaço de tempo possível, com o menor risco e menor número de pessoas possível, está sob uma pressão que muitas vezes faz com que seu olhar se desvie das relações para se concentrar no objetivo de fazer lucros.
 

ISTOÉ – Está errado?
Helio Mattar

Não, não tem nada de errado, exceto que a empresa, ao
fazer isso, deixa de cuidar do humano, para ser exclusivamente um agente produtivo. Se é isso que a sociedade quer dela, é isso que ela terá. Mas hoje, quando você pergunta à sociedade, a resposta vai em outra direção. O Akatu divulgou uma pesquisa há quatro meses e um
dos resultados mostra o seguinte: o consumidor brasileiro pede primeiro qualidade (55%), depois o preço (52%), mas 28% pedem meio ambiente. Dez, 15 anos atrás, meio ambiente era uma questão que o consumidor desconhecia. Mesmo que ele não esteja operacionalizando isso, ele
está mostrando que há um desejo de que a empresa preserve o meio ambiente. Esse desejo expresso pelo mercado, de um lado, mais a
ética de alguns presidentes de empresa que efetivamente tenham
a intenção de fazer – e a intenção é o primeiro passo –, fará com
que no tempo a responsabilidade social se desenvolva.

ISTOÉ – Por que o sr. deixou a sua vida empresarial e passou a se dedicar mais ao social?
Helio Mattar

Tive o privilégio de estudar na Escola Politécnica, da USP,
uma instituição pública. Tive ainda uma bolsa da Fapesp. No meu entender, fiquei devedor da comunidade. Eu tinha de retribuir de
alguma maneira. Além disso, tenho paixão pelo social e acho que
cada um de nós tem obrigação de entregar um mundo melhor do
que aquele que recebemos. Tem um ditado na porta do prédio do
Unicef que diz que as crianças emprestam o mundo para nós, adultos. Acho que temos de devolvê-lo melhor. A maneira que encontrei de contribuir foi me afastar da vida empresarial e fazer mais pelo social.
Isso aconteceu em 1998. De 1999 a 2000 fiz parte do governo federal, em seguida presidi a Fundação Abrinq, atividade que exerço até hoje. Também estou à frente do Akatu (que quer dizer semente para
um mundo melhor) e fui um dos fundadores do Instituto Ethos.

ISTOÉ – Essa sua atitude não causou estranhamento, ou mesmo protesto, dos amigos e familiares?
Helio Mattar

Quando larguei a vida empresarial tive apoio da família.
O cotidiano de uma empresa exige uma agressividade para lidar com
as situações que me afetavam muito. Quando decidi participar do governo houve protestos por causa da distância – teria de ir de São Paulo para Brasília –, mas também apoio, por estar participando ainda mais ativamente da construção do bem comum. E quando voltei
para São Paulo houve uma grande comemoração.

ISTOÉ – Com isso você renunciou também ao dinheiro?
Helio Mattar

Com certeza. Se eu permanecesse com as atividades empresariais, estaria não só ganhando dinheiro como também deixaria de invadir minha poupança. Mas fui uma pessoa bem-sucedida, tenho uma casa boa e não preciso de muito para viver. Deixei para os meus filhos uma educação de qualidade para que sigam a vida deles.

ISTOÉ – O sr. dá preferência a produtos nacionais em sua casa?
Helio Mattar

Sim. De importado, tenho meu adoçante suíço e meu piano,
um Yamaha. Já tive um carro importado, um Volvo, porque eu viajava muito e me aconselharam a ter um carro bom. Mas deixei a vida
de empresário e o Volvo se tornou desnecessário.