Se 2002 foi ótimo para o cinema brasileiro, que deve fechar o ano com um público de oito milhões de espectadores, 2003 promete melhores dígitos. Distribuidores, exibidores e cineastas estão fazendo um coro uníssono e otimista como não acontecia desde a euforia da aclamada retomada do cinema nacional, há quase uma década. Do alto de sua experiência na contabilidade dos números da atividade cinematográfica com a Filme B, empresa voltada para o mercado do cinema no Brasil, o diretor Paulo Sérgio Almeida, de Xuxa e os duendes 2 – no caminho das fadas, é categórico: “2003 vai ser o melhor ano da retomada e não será nenhuma surpresa se o público duplicar.” Bruno Wainer, sócio da distribuidora Lumière, que lançou quatro das maiores bilheterias de 2002 – o imbatível Cidade de Deus, com mais de três milhões de espectadores, Abril despedaçado, Surf adventures e Madame Satã – também aposta na tendência. “Este, sem dúvida, será o ano de ouro do cinema brasileiro.”

O entusiasmo faz sentido. Há muito não se esboçava uma safra tão promissora de filmes nacionais, que somam cerca de 60 produções, contra as 30 de 2002. Fato raro no cenário recente, os grandes lançamentos começam a pipocar em 31 de janeiro com a aguardada comédia Deus é brasileiro, de Cacá Diegues, com Antonio Fagundes no papel do Todo-Poderoso que vem ao Brasil à procura de um santo que o substitua enquanto tira férias da humanidade. É a volta de Diegues ao formato do consagrado Bye-bye, Brasil (1979) num road movie de
R$ 7 milhões filmado ao longo de 18 mil quilômetros nos Estados de Pernambuco, Alagoas e Tocantins. Na sequência, estréia em abril o não menos esperado Carandiru, de Hector Babenco, que recupera a temática social de sucessos, como Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1978) e Pixote, a lei do mais fraco (1980), depois do mergulho intimista de Coração iluminado (1998). A produção de R$ 12 milhões, baseada
no best seller Estação Carandiru, leva às telas os impressionantes depoimentos colhidos pelo oncologista Drauzio Varella – interpretado
por Luiz Carlos Vasconcellos – na extinta Casa de Detenção de
São Paulo, cenário do trágico massacre de outubro de 1992.

Com distribuição internacional da Sony Classics, junto com Deus é brasileiro, o filme de Babenco é um dos quatro co-produzidos pela Columbia Tristar, que investiu R$ 12 milhões na produção de fitas nacionais. Os outros foram Desmundo, de Alain Fresnot, previsto para maio, e O homem que copiava, de Jorge Furtado, também apontado para maio. Rodrigo Saturnino Braga, diretor-geral da Columbia, defende seu latifúndio. “O conjunto da produção é dos mais fortes e isso se deve à participação das empresas americanas na atividade.” Um fato relevante, porém, é a entrada em cena da Globo Filmes, cujo poder de fogo dispensa considerações. Além de Deus é brasileiro e Carandiru, vêm carimbados pelo selo de co-produção da empresa, outras grandes apostas de público: Lisbela e o prisioneiro, O redentor e as prometidas aventuras cinematográficas do cast global formado pela turma do Casseta & Planeta, Os normais, Sandy e Junior e Os trapalhões. Somado a Xuxa e os duendes 2, que deve ficar em cartaz por todas as férias escolares, e ao novo Xuxa de fim de ano, a Globo Filmes somará dez produções de sucesso garantido. “Se imaginarmos, por baixo, um público de 1,2 milhão para cada um deles, pode-se prever um número superior a 12 milhões de espectadores”, calcula Paulo Sérgio Almeida, da Filme B.

Diante das novas vitaminas injetadas,
o primeiro sintoma de saúde do filme nacional se deu com Cidade de Deus, até hoje a única produção a desbancar as fitas de Xuxa com a arrecadação
de R$ 18,5 milhões, a maior renda do cinema brasileiro desde a retomada
e a sexta maior de 2002, acima até de Sinais, com Mel Gibson. Hector Babenco aplaude o feito dos diretores Fernando Meirelles e Katia Lund. “A grande surpresa de 2002 foi ver que um número limite de público foi rompido de forma muito orgânica”, diz Babenco. “Quando se tem um bom filme, um bom marketing e um lançamento inteligente pode-se chegar a cifras que só os filmes estrangeiros atingem. Eu, descaradamente, fiz Carandiru para chegar ao grande público. Sem nenhuma concessão.” Só de leitores do livro de Drauzio Varella, Babenco já conta 347 mil espectadores potenciais. Para ter em mãos um roteiro eficiente, trabalhou dois anos fundindo personagens até fechar nos 28, cada qual com seus dramas pessoais. “Carandiru segue um pouco a linha de Short cuts, de Robert Altman, com muitos cortes e histórias, tudo passado em um pavilhão e um andar. Mas busquei uma narrativa simples, nada complexa e bastante compreensível”, adianta.

 

Produtores experientes sabem que dramas urbanos, de forte conteúdo social, costumam atrair público ao oferecer enredos que a televisão raramente mostra. Carandiru se enquadra neste segmento. “A pergunta do espectador é sempre esta: posso ficar sem assistir a este filme?”, ensina Paulo Sérgio Almeida. “Alguém pode ficar sem ver Carandiru? Não pode.” E alguém conseguirá não conferir Antonio Fagundes como Deus? Difícil. Especialmente no registro cômico de um enredo bolado pelo escritor baiano João Ubaldo Ribeiro. “Tentei lançar um olhar contemporâneo sobre o Brasil de hoje”, afirma Cacá Diegues. “A grandeza do cinema nacional é a capacidade de filmar os vários aspectos deste quebra-cabeça que é o Brasil.” Variedade, portanto, não vai faltar na nova safra. Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes, por exemplo, baseado em obra de Osman Lins, acompanha as cômicas aventuras do malandro Leléu (Selton Mello), um caminhoneiro que assume uma personalidade diferente em cada cidade. Numa delas, seduz Lisbela (Débora Falabella) e passa a ser perseguido pelo seu noivo.

 

Mais amargo e dramático é Dois perdidos numa noite suja, de José Joffily, adaptação para a Nova York pré-atentado da famosa peça de Plínio Marcos. Só que, em vez de dois homens dividindo um quarto, os protagonistas Tonho (Roberto Bomtempo) e Paco –
a onipresente e talentosa Débora Falabella, que no filme se passa por homem – formam um casal de imigrantes brasileiros que acabam se apaixonando num universo de miséria afetiva e material. Ainda no cardápio cinematográfico, duas comédias prometem temperar a safra com leveza. A primeira, Apolônio Brasil, o campeão da alegria, prevista para abril, é assinada pelo veterano ator e diretor Hugo Carvana, que inventou uma história maluca passada nos anos 50, no Rio de Janeiro. Inspirado nas chanchadas, Carvana traça o perfil de um músico boêmio, Apolônio Brasil (Marco Nanini), cujo cérebro é roubado para experiências de clonagem. Menos ambicioso e rodado a um custo
de R$ 350 mil, A festa de Margarette, do estreante Renato Falcão, homenageia a comédia muda com fotografia em preto-e-branco e velocidade de 18 quadros por segundo. Mostra um desempregado
que não abre mão de presentear a mulher no seu aniversário.

Resta saber se as salas de cinema serão suficientes para tantos
filmes, alguns ainda sem distribuição, caso de Amarelo manga,
de Cláudio Assis, grande vencedor do 35º Festival de Brasília
do Cinema Brasileiro, como pondera Ademar Oliveira, diretor de programação do Espaço Unibanco, de São Paulo. “O sistema de
exibição é facilmente estrangulável. Basta que se lancem três blockbusters americanos com 400 cópias cada um para que ocupem
1,2 mil salas num universo de 1,6 mil”, diz ele. “Temos produto, temos mercado, mas faltam políticas expressivas na área de distribuição
e exibição.” Mais um nó para o novo ministro da Cultura desfazer.