O filme agora é em espanhol: desgovernado com a crise, o governo argentino não resistiu e decidiu confiscar os depósitos em dólares, com prazos para devolução condicionados aos valores e juros de 2% ao ano até completar a devolução. Só tem poupança disponível quem sabiamente desconfiou de todos os outros governos e guardou os dólares que possuía embaixo do colchão. Quem confiou nas autoridades do país vai ter que engolir as novas regras: os depósitos de até US$ 5 mil começam a ser liberados em janeiro de 2003, em 12 cotas; entre US$ 5 mil e US$ 10 mil, a partir de março de 2003, também em 12 meses. Daí para a frente só piora: quem guardou entre US$ 10 mil e US$ 30 mil vai começar a receber em junho do mesmo ano, em 18 parcelas. Acima de US$ 30 mil, a liberação começa em setembro de 2003, com pagamento em 24 cotas mensais. Acabou a paridade: os depósitos em dólar serão convertidos pela cotação de US$ 1 para 1,40 peso.

A decisão foi tomada para segurar o dinheiro nos bancos e garantir um pouco de estabilidade à caótica situação financeira criada por sucessivos governos marcados por uma incompetência tão rasteira que permite ao inepto e recém-saído da prisão domiciliar Carlos Menem, ex-presidente, pontificar (e ser ouvido, o que é surpreendente) sobre a economia do país. Ele é contra a desvalorização cambial e defende a dolarização que afundou a economia. Menem, que governou o país por dez anos em meio a frequentes escândalos (o que o levou à prisão foi o tráfico de armas para a Croácia e o Equador, entre outros), está aproveitando a fragilidade do país para armar seu palanque e concorrer novamente à Presidência da Argentina nas eleições de 2003. Seria mais uma desgraça para o povo argentino: o retorno do estilo “pizza com champán”, título do best-seller da jornalista Sylvina Walger, que descreve o peculiar gosto de Menem, sua turbulenta vida privada e seus caprichos milionários.

Enquanto os ex-presidentes usufruem a garantia de seus salários vitalícios, 7.463 pesos – direito garantido até a Eduardo Camaño, presidente por um único dia –, o povo argentino se desespera com a falta de dinheiro e de emprego. A taxa de desemprego no país atinge 18,% da força de trabalho, levando profissionais, como a bailarina Nelia Astorga, a dançar na rua com turistas em troca de algumas moedas e milhares de argentinos a se enfileirarem na porta dos consulados da Espanha e da Itália em busca de um futuro em outro país. Muitos esperam mais de 24 horas para ser atendidos e chegam na madrugada para conseguir uma senha. O Consulado de Israel também tem sido procurado: a situação atual do país está levando boa parte dos 200 mil argentinos judeus a deixar o país.

Calcula-se que 5,5 milhões dos 36 milhões de argentinos têm dificuldades para conseguir trabalho e os subempregados representam 16,3% da população. Estima-se, ainda, que um terço da população vive hoje em condições de pobreza. Se não bastasse tanto sofrimento, a falta de pulso do governo permitiu que laboratórios e farmácias deixassem o país sem medicamentos, a ponto de o Brasil doar mais de uma tonelada de insulina ao vizinho. Faltam remédios para câncer, diabete, os hospitais públicos estão paralisados, fazendo unicamente cirurgias de urgência. Valente, orgulhosa e cheia de dignidade, a população reage como pode: os protestos estão voltando a pipocar pelo país. Em Buenos Aires, a belíssima capital, médicos do serviço público pararam na quarta-feira 9, para reivindicar o pagamento dos salários atrasados e o abastecimento de medicamentos e equipamentos. Em Córdoba, taxistas entraram num feio conflito com a polícia.

E, se Deus não ajudar essa população predominantemente católica (92%), 2002 não será fácil. O governo argentino estima que a economia do país terá uma contração de 2% em relação a 2001.