Fotos: Mônica Dallari

O que fazer? Nascem na China 119 meninos para
cada 100 meninas. Em 2020, haverá 30 milhões de homens
a mais

As crianças nascidas após a implantação da Política de Planejamento Familiar na China, no final dos anos 1970 – que permitia a cada casal ter apenas um filho –, provocam hoje uma revolução nos hábitos e costumes milenares dos chineses. Atualmente na faixa entre 25 e 30 anos, os jovens nascidos naquele período preferem se casar mais tarde ou mesmo permanecer solteiros, anseiam por viver longe das famílias e as mulheres adiam o quanto podem a maternidade. A flexibilidade de pontos do programa, que se tornou necessária com o tempo, deve provocar um inesperado baby boom em 2007.

O programa começou quando a população chinesa, a maior do mundo, estava perto de bater a casa de um bilhão de habitantes, o que ocorreu em 1980. Sem a adoção da “política do filho único”, avalia-se que a China, hoje com 1,32 bilhão de habitantes, teria 400 milhões de pessoas a mais. Com a manutenção da política, que o governo ajusta, mas não cogita suspender, a expectativa é que a população chegue a 1,36 bilhão em 2010 e a 1,45 bilhão em 2020.

Ao obrigar o casal ao filho único (ficaram de fora apenas as 55 etnias consideradas minoritárias, que representam 8,1% da população, contra 91,9% da etnia ham), sob risco de pesadas multas e punições, o governo não imaginava os problemas que estavam por vir. O primeiro deles, de origem cultural, foi a preferência pelos filhos homens, especialmente no campo, onde ainda vivem 60% da população. Os homens possuem maior força física, garantem a continuidade da família e são os responsáveis por sustentar os pais na velhice. Pela tradição, são considerados “superiores”. Em mandarim, principal dialeto chinês, “filho homem” e “semente” têm o mesmo som, zi.

Fotos: Mônica Dallari

A política do filho único gerou matança de bebês do
sexo feminino, desequilibrou a população e pode causar
distúrbios sociais

A conseqüência imediata foi a matança de meninas recém-nascidas, o abandono em orfanatos e, atualmente, o aborto, após a constatação do sexo em exames de ultra-som. O exame para a identificação, apesar de proibido, é feito em larga escala. Ainda neste primeiro semestre deverá ser aprovada uma lei que pune com pena de três anos de prisão quem fizer o aborto para interromper a gestação de uma menina. Na China, o aborto é permitido em casos de gravidez indesejada (sem saber o sexo da criança) e pode ser feito em hospitais públicos a um custo de aproximadamente US$ 50.

O desequilíbrio entre os sexos tende a aumentar ainda mais. Hoje, nascem na China 119 meninos para cada 100 meninas. Em algumas províncias, como Guandong e Hainan, a proporção é de 130 meninos para 100 meninas. A média nos países em desenvolvimento é de 104 a 106 meninos para cada 100 meninas nascidas. A desproporção é tão séria que a Comissão Nacional de Controle Populacional e Planejamento Familiar calcula que em 2020 existirão 30 milhões de homens a mais que mulheres, o que poderá gerar o aumento da violência e distúrbios sociais. Esses homens estarão principalmente nas áreas rurais, que têm escolaridade mais baixa.

Fotos: Mônica Dallari

Novos casais Em 2006, foram realizados 170 mil
casamentos em Pequim, 77% mais do que no ano anterior

A questão causa preocupação a ponto de as autoridades permitirem aos casais que vivem no campo ter o segundo filho, caso o primeiro seja uma menina ou possua grave problema de saúde. Como a manutenção do controle de natalidade é considerada fundamental para o crescimento do país, especialmente nas áreas rurais, no início deste ano entrou em vigor uma nova política de ajuda financeira às famílias no campo que acataram a lei do planejamento familiar. O benefício foi testado em dez províncias desde 2004. O objetivo é estimular cada vez mais os casais a terem apenas um filho. Ao completar 60 anos, todos os pais e mães de filhos únicos, de duas filhas ou que tenham perdido o único filho terão direito a receber cada um uma pensão anual de 600 yuans, US$ 75 per capita, ou US$ 150 por casal.

Pode parecer pouco, porém na China o sistema previdenciário começa apenas agora a tomar forma, especialmente pelo significativo aumento da população com mais de 60 anos. Até hoje não existia nenhuma aposentadoria rural. Os homens são obrigados a se aposentar com 60 anos e as mulheres com 55 na zona rural – e 60 anos nas grandes cidades.

Homens e mulheres acima de 60 anos deixam de receber seus vencimentos e passam a depender totalmente dos filhos. Hoje, 143 milhões de chineses, ou 11% da população, têm mais de 60 anos. Em 2020, a estimativa é de que os idosos cheguem a 234 milhões, 16% do total. Além da população de idosos crescer 3% ao ano, a expectativa de vida subiu de 67 para 73 anos nas duas últimas décadas.

Fotos: Mônica Dallari

Sem previdência Aumento da população com mais de
60 anos leva governo a criar benefícios aos idosos

Mas, e os casais que tiveram apenas uma filha mulher? Esse é outro problema enfrentado pela geração dos filhos únicos. Afinal, não são eles os responsáveis por manter seus pais? O resultado é que muitos casais jovens acabam sendo obrigados a sustentar os pais e os sogros, além do próprio filho. Isso se não estiverem vivos avôs e avós, fato bastante freqüente. Não é à toa que muitos preferem permanecer solteiros.

Para solucionar esse impasse, uma nova modificação na política de controle de natalidade permite que casais formados por dois filhos únicos possam ter dois filhos, com a diferença de quatro anos entre eles. A novidade animou os cerca de dois milhões de filhos únicos em Pequim, onde as mulheres, cada vez mais dedicadas à profissão, não se casam com menos de 27 anos. Como na China não há nada que não seja em grandes proporções, por conta dessa mudança prevê-se um baby boom em 2010. Porém, o fenômeno acabou se antecipando em três anos, em função do horóscopo chinês. Para evitar outro baby boom em 2010, está em estudo o fim da obrigatoriedade de espera para se ter o segundo filho.

Em 2007, segundo o horóscopo chinês, se comemora o ano do “Porco de Ouro”, quando se cruzam no mesmo período o porco com o elemento ouro. O encontro só ocorre a cada 60 anos, e é visto como sinal de sorte e bonança para os nascidos no período. A expectativa é que, em vez dos 78 mil novos bebês registrados anualmente em Pequim, aconteçam 140 mil nascimentos!

O desejo de ter dois filhos é resultado da insatisfação dos jovens em terem sido filhos únicos. Além de se sentir sozinhos, eles sofrem com a superproteção das mães e são muito pressionados para obter bons resultados nas escolas e competir nos estudos. Não é à toa que são apelidados de “pequenos imperadores” ou “imperatrizes”.

A conseqüência já aparece no mercado de trabalho. Por serem considerados mimados, pouco sociáveis, irascíveis e egoístas, muitas vezes acabam preteridos nos empregos. A explicação é que eles têm tudo muito fácil e por isso desistem logo diante da primeira dificuldade. O mesmo acontece nos casamentos. Outra pesquisa, feita com 162 casais com menos de 30 anos, mostrou que o sonho de 92% deles era morar longe dos pais por conta da interferência deles – especialmente da sogra… A taxa de divórcios de casamentos de filhos únicos é de 24,5%, contra 11,7% de casais vindos de famílias mais numerosas.

A verdade é que os problemas do programa de controle de natalidade estão só no começo. Nesse momento, a política está em questão por atingir apenas a população mais pobre ou os funcionários públicos, obrigados a dar o exemplo. Com a abertura do mercado e o surgimento dos novos-ricos, a multa de 60 mil yuans (US$ 7,5 mil) para quem tiver o segundo filho e o elevado custo das escolas (1,2 mil yuans mensais o jardim da infância, ou 800 yuans o ensino fundamental) deixaram de ser empecilho.

O privilégio atinge uma pequena minoria, mas provoca descontentamento, especialmente porque chineses famosos estão tendo mais filhos, em uma demonstração considerada de total desrespeito ao controle de natalidade. Afinal, a lei deveria ser igual para todos. É o caso da cantora popular Mao Amin, do cineasta Chen Kaige, diretor do premiado Adeus, minha concubina, e do ídolo do futebol chinês Hao Haidong, todos eles com mais de um filho. O governo estuda a adoção de punições maiores, que poderão chegar a 1,2 milhão de yuans, ou US$ 150 mil, para quem infringir a lei.

Isso não quer dizer que a dor de cabeça da Comissão Nacional de Controle Populacional e de Planejamento Familiar vá diminuir. O baby boom deste ano era para acontecer inicialmente em 2015. Depois, a previsão se antecipou para 2010. Agora, corre-se o risco de ter dois baby boons na mesma década. Resultado: as surpresas da política do filho único, que já não é tão único assim, prometem se suceder.