Novas terapias já alcançam a cura em mais de 50% dos casos. Quando não, prolongam a vida com restrições, mas menos sofrimento

Não é a pior doença do mundo. Doenças do coração, nos países desenvolvidos, e parasitárias, nos outros, matam muito. Mas é a mais estigmatizada. Ao ouvir um diagnóstico de câncer, o paciente sofre como se recebesse uma sentença de morte, recolhe-se para fugir do preconceito, entra em depressão, chora e, mesmo que não queira, começa a pensar no fim da existência. Muitos desistem de viver. É a pior alternativa. Outros vão se despedir da vida realizando algum sonho antigo de viagem. Alguns se apegam à religião – qualquer uma, desde que lhe dê esperanças de sobreviver – , recuperam velhas amizades, retornam à família, correm atrás de qualquer tratamento que prometa cura. Todos, porém, de uma maneira ou de outra, querem ouvir o que o oncologista Paulo Hoff, de apenas 33 anos, tem a dizer: “Pelo menos 50% dos diagnósticos de câncer têm cura e os pacientes que não têm cura já podem pensar numa sobrevivência longa, com restrições, mas sem sofrimentos, como um diabético. Quase tudo depende da rapidez com que se chega ao diagnóstico.

Paulo Hoff não é forasteiro nessa dramática arena. Com 16 anos, ele entrou na Faculdade de Medicina de Brasília, motivado por um caso de câncer na família. Terminou seus estudos na Universidade de Miami, de onde saiu direto para o M.D. Anderson, em Houston, no Texas, o principal hospital para tratamento e pesquisas em câncer do Ocidente, onde fez especialização. Hoff se tornou professor e médico titular do M.D. Anderson (algo raro para estrangeiros), foi eleito professor do ano do hospital em 2000 e escreveu mais de 40 artigos originais e 25 capítulos sobre o câncer, incluindo dois do livro Principles and practice of oncology, a bíblia dos oncologistas.

É uma fera que retornou no ano passado para o Brasil por causa de duas menininhas, uma de três anos e outra de sete anos, suas filhas. “Ou voltávamos agora ou minhas filhas teriam poucos laços com nossa família e com nossas raízes no Brasil”, diz Hoff, que voltou para trabalhar no Albert Einstein, em São Paulo, com a garantia de continuar à frente de pesquisas, e no Centro Paulista de Oncologia (CPO), um dos melhores centros de tratamento de câncer do País, onde coordena o núcleo de estudos clínicos em câncer. Paulo Hoff deu boas notícias sobre a doença – na verdade, várias doenças que se acomodam sob a denominação “câncer”– na seguinte entrevista a ISTOÉ:

ISTOÉ – O câncer ainda é uma doença incurável?
Paulo

O que chamamos de câncer são várias doenças com características similares. Para alguns tipos de câncer existem tratamentos extremamente efetivos e, nestes casos, uma minoria dos pacientes não consegue se curar. Poderia citar como exemplo câncer de testículos, que é relativamente incomum, mas tem um índice de cura altíssimo. Grande parte dos linfomas, alguns tipos de leucemia e, de maneira geral, a maior parte dos tumores sólidos, quando detectados precocemente, são curáveis. É importante lembrar que hoje a maior parte dos pacientes com câncer é curada e que a maior parte dos que não são curados está num estágio muito avançado. Mesmo para esses pacientes têm-se feito progressos significativos.

ISTOÉ – Os médicos brasileiros, generalizando, não são de alguma maneira lentos, ou otimistas demais nos seus diagnósticos, prejudicando a detecção precoce?
Paulo

Fazer diagnósticos diferenciais é muito importante na medicina porque existem várias doenças que se apresentam com sintomas semelhantes. Entretanto, concordo com você que no Brasil ainda se precisa de um esforço maior de educação não só dos pacientes, mas também dos médicos. A oncologia tem evoluído em três vertentes, uma englobando prevenção e detecção, outra o aprendizado do que causa o câncer e, finalmente, como tratá-lo mais eficazmente. Já existem métodos de se detectar câncer de colo uterino, de intestino, de mama e de próstata precocemente com alguns exames simples. Há alguns tipos de câncer que são relativamente raros em países desenvolvidos e que ainda são comuns no Brasil, como o câncer de colo uterino. É muito previsível, não começa como câncer, mas progride nessa direção. Em países como os Estados Unidos, onde a maior parte das mulheres faz o exame Papanicolao rotineiramente, a incidência de câncer no colo uterino caiu dramaticamente, enquanto que no Brasil ainda é problema comum.

ISTOÉ – As viroses infantis não podem encobrir um diagnóstico de câncer? Quase tudo que as crianças têm hoje é atribuído à virose.
Paulo

Acho importante capacitar nossos médicos para fazer diagnósticos precoces, especialmente em crianças. Na maior parte das vezes será mesmo uma virose, porque o câncer não é comum em crianças, mas o médico deve ficar atento e não pode baixar a guarda.

ISTOÉ – Existe algum sinal?
Paulo

São centenas de viroses e de tipos de câncer. Não existe um sinal específico. Mas acho que a família deveria ter muito claro que, se há uma alteração de qualquer tipo que não está se resolvendo dentro de um período razoável de tempo, tem que se conversar com o pediatra. Felizmente, os avanços no tratamento de câncer infantil são extraordinários, especialmente após uma detecção precoce.

ISTOÉ – Quais os avanços no tratamento de idosos?
Paulo

O objetivo comum para todos os pacientes é fazer cada vez mais tratamentos menos tóxicos e mais efetivos. Os pacientes idosos também se beneficiam desses tratamentos. Por exemplo, não se faziam transplantes de medula em pessoas mais velhas devido aos efeitos colaterais, mas desenvolveu-se recentemente o que se chama minitransplante: o médico faz o transplante com uma combinação de células do indivíduo e do doador, usando os efeitos imunológicos do transplante. É menos perigoso que o transplante tradicional e menos tóxico. Há também transplantes usando cordão umbilical, extremamente promissores porque as células do cordão umbilical são eficientes e causam menos reações adversas.

ISTOÉ – A quimioterapia tem um protocolo mundial. Por que alguns médicos acertam no tratamento e outros não?
Paulo

De uma maneira geral, há um esforço muito grande para desenvolver terapias mais eficientes. À medida que elas ficam melhores existe uma homogeneização do tratamento, mas não há um protocolo único para todos os tipos de câncer. Como tudo na vida, as pessoas são diferentes e os tratamentos muitas vezes são individualizados. Quando falha o tratamento, geralmente não é culpa do médico. Ele pode fazer tudo certo e não dar certo, não dar o resultado esperado porque o tumor é uma variável muito grande. Para algumas patologias existe um consenso no tratamento, para outras não; essa é a diferença da oncologia para outras especialidades. Os agentes quimioterápicos podem ou não funcionar. O mesmo médico, tratando pacientes com a mesma patologia e a mesma medicação, pode ter sucesso com um e não com o outro. Não é característica do médico ou do paciente, os tumores é que têm uma grande heterogeneidade.

ISTOÉ – A depressão do paciente pode prejudicar o tratamento?
Paulo

Embora não prejudique necessariamente, eu acredito que a ausência de depressão ajuda. O paciente que abraça a causa, que se coloca contra o tumor e participa de seu tratamento ativamente geralmente vai melhor. Existe uma depressão normal, esperada, mas às vezes ela passa do normal e cabe ao médico reconhecê-la. Há medicamentos que ajudam o paciente a sair dessa depressão.

ISTOÉ – O sr. acha que o médico pode dar uma perspectiva do tempo de vida do paciente?
Paulo

Ninguém pode fazer essa previsão, a não ser que seja muito perto do final, quando a pessoa está desenganada. No início do tratamento o máximo que um médico pode fazer é dar uma estimativa baseada no estudo de população. O médico não tem como saber quanto tempo o paciente vai viver. Individualmente, essas estimativas erram. Quando converso com meus pacientes, tento evitar dar qualquer tipo de estimativa porque, na maior parte das vezes, ela está errada.

ISTOÉ – Stress causa câncer?
Paulo

O estado de espírito da pessoa é importante para o seu bem-estar físico, mas não existe uma comprovação de que um estado de depressão ou stress cause câncer. Existem alguns tumores que são causados por fatores externos, como vírus, exposição a produtos químicos como o benzeno, por exemplo. Grande parte dos casos hoje, no mundo inteiro, é causada pelo fumo. Em alguns casos a pessoa herda uma predisposição genética, o que aumenta o risco, mas não quer dizer que ela terá necessariamente câncer.

ISTOÉ – Como explicar a longevidade das velhinhas francesas que fumam um cigarro atrás do outro e exibem uma alegria incompatível com o câncer?
Paulo

Nem todo mundo que fuma vai ter câncer, pois a pessoa tem que ter uma predisposição. Mas a chance de ter um câncer de pulmão para o fumante é muito maior do que para o não fumante.

ISTOÉ – E se a pessoa parar de fumar?
Paulo

O risco diminui progressivamente. É muito difícil voltar a ser zero ou igual a antes de a pessoa fumar, mas vai diminuindo ano a ano. O fumo não causa só câncer de pulmão, mas de pâncreas, de bexiga e tem impacto em outros tipos de câncer. É triste porque é um câncer evitável. Mesmo para quem fuma pouco existe um risco, mas a quantidade impacta, é lógico. Se você fumar três carteiras por dia suas chances são maiores do que se fumar dez cigarros. O melhor mesmo é não fumar.

ISTOÉ – A alimentação influi no surgimento da doença?
Paulo

Sabemos que as pessoas que consomem mais frutas e vegetais e menos gordura animal desde criança têm menos câncer. Isso é algo que deve começar muito cedo, na infância. Você não precisa ser vegetariano, mas comer carne vermelha todo dia é um exagero. Tudo na vida tem que ter um certo equilíbrio. Você pode ter os prazeres da vida, com bom senso. Um exemplo é o vinho tinto, que, bebido moderadamente, até protege o coração.

ISTOÉ – Quais os avanços em relação ao tratamento médico?
Paulo

A oncologia clínica surgiu há pouco tempo, depois da Segunda Guerra Mundial. Inicialmente os avanços eram bem lentos, mas as pesquisas vêm ganhando uma velocidade impressionante. Durante 40 anos, de 1957 até 1996, existia uma única droga ativa para câncer de cólon. De 1996 para cá surgiram várias outras, todas disponíveis no Brasil. Da quimioterapia que ataca tudo, com drogas de espectro muito amplo, fomos aprendendo a desenvolver drogas mais específicas, mais ativas e menos tóxicas. Já existe quimioterapia em forma de pílula: o paciente toma a pílula e ela se transforma em quimioterapia dentro do câncer. Mas o maior avanço foi o aprendizado de que as células do câncer têm vários receptores que agem como aceleradores e freios. Quando você tem um câncer, existe uma falta de balanço, ou o acelerador está no fundo, puxando e dividindo as células, ou o freio está quebrado e a célula não consegue parar de se dividir. Todo o esforço tem sido no sentido de desenvolver novos tratamentos que vão ou forçar esse freio a funcionar ou desligar o acelerador.

ISTOÉ – Que drogas são essas?
Paulo

Hoje há uma quantidade muito grande de anticorpos que atacam diretamente esses receptores ou medicações ainda mais interessantes que bloqueiam a transmissão do sinal dos receptores na superfície das célula para dentro do núcleo. Alguns desses anticorpos já estão disponíveis para pacientes com câncer de mama, por exemplo.

ISTOÉ – E a cirurgia?
Paulo

É o tratamento mais antigo, ainda curativo em grande número de casos, especialmente quando o câncer é detectado precocemente. Mas nem sempre é possível e nem sempre é curável. Depois veio a radioterapia, eficiente no tratamento de alguns tipos de câncer, e, depois da Segunda Guerra, a quimioterapia. Hoje fazemos a passagem de tratamentos inespecíficos, agressivos, para tratamentos cada vez mais específicos para células tumorais, identificando e atacando seus pontos fracos. Esse é o futuro.

ISTOÉ – Esse futuro será quando?
Paulo

Será próximo. Estamos falando de alguns anos. Na verdade, já é realidade para alguns tipos de câncer. Num futuro próximo, não vai importar se o câncer é de mama ou cólon e sim a característica molecular do tumor. E, baseando-se nessas características moleculares, o médico poderá desenhar um tratamento específico. Algumas dessas drogas já estão disponíveis. É uma revolução no tratamento, porque, ao mesmo tempo, as drogas são específicas e têm menos efeitos colaterais.

ISTOÉ – O acesso a essas inovações não é restrito a quem pode pagar o caríssimo tratamento?
Paulo

O Brasil ainda tem deficiências enormes na área de saúde, é um país de contrastes abismais entre os que têm acesso e os que não têm. Mas não estamos no fundo do poço em comparação a outros países. Não está bom do jeito que está, claro, mas está melhorando. Lógico que muitas vezes o médico não tem acesso ao que é mais moderno pelo alto custo, mas hoje já há acesso a grande parte dos tratamentos. Algumas dessas medicações já estão disponíveis inclusive pelo SUS.

ISTOÉ – Qual será a próxima etapa dos avanços?
Paulo

Dificilmente vai haver uma medicação que sirva para todo mundo. Haverá um período, que já estamos começando a viver, em que talvez nós não consigamos curar todos os tipos de câncer, mas permitiremos ao paciente que não é curado viver razoavelmente bem durante muito tempo. É como se ele tivesse diabete: nunca se cura do problema, mas pode-se viver bem durante muitos anos. Isso já está acontecendo. O Brasil é um país que faz avanços muito rápidos nessa área.