O governo colocou R$ 187 na mesa. A oposição aceitou conversar e deu um lance de R$ 250. Discurso daqui, discurso de lá, o acordo foi fechado em R$ 200. A correção da tabela do Imposto de Renda, uma bandeira oposicionista acatada pelo Executivo, serviu de troco. Negócio fechado na palavra, agora só falta a papelada, como em qualquer feirão de automóveis. O papel, no caso, deverá ser uma medida provisória assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, dizendo que o salário mínimo do País, a partir de maio, será de R$ 200 – um reajuste de 11,11% sobre os atuais R$ 180. “A definição do valor do mínimo é hoje uma questão eminentemente política”, diz Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

A Constituição de 1988 aponta outro caminho para a definição do menor valor que um trabalhador brasileiro deveria receber por mês (deveria, pois pelo menos 11 milhões de pessoas vivem no Brasil com “até” um salário mínimo). A Carta diz que o mínimo deve garantir “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência” a todos os brasileiros e deve sofrer “reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”. Letra morta. Em outubro de 1988, mês em que a atual Constituição passou a valer, o mínimo era equivalente a R$ 226, em dinheiro de hoje, segundo estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese). Treze anos depois, o salário vale 25% menos.

Para respeitar ao pé da letra a Constituição, cada trabalhador brasileiro deveria ter recebido, em dezembro, R$ 1,1 mil, informa o Dieese. “A insuficiência do salário mínimo é flagrante”, diz o coordenador do estudo, o economista Ilmar Ferreira. Só para comprar uma cesta básica para alimentar uma pessoa durante 30 dias, o brasileiro gasta, em média, 73,5% do valor atual do piso nacional. Quando surgiu, de uma canetada de Getúlio Vargas, em 1940, o mínimo valia cerca de R$ 660, ainda de acordo com a atualização monetária feita pelo Dieese. No fim dos anos 50, esbarrou nos R$ 1 mil. De lá para cá, não parou mais de minguar. Nos anos 60, variou entre R$ 450 e R$ 600. Na década seguinte, a do milagre brasileiro, entrou no patamar dos R$ 300. Os anos 80 derrubaram o valor para a casa dos R$ 200 e a década seguinte tratou de estagná-lo entre os R$ 100 e os R$ 200.

Bicicleta – A canetada de FHC vai mexer diretamente no contracheque de Antonio Aparecido Gomes, um gari de Fortaleza que engrossa o contingente de trabalhadores ativos que recebem nada mais, nada menos que o salário mínimo – seriam 7,2 milhões de pessoas. Funcionário há 11 anos da Elurb, a empresa municipal que cuida da limpeza de Fortaleza, no Ceará, trabalha seis horas por dia varrendo as ruas da cidade. Dos 30 mil servidores municipais, de acordo com o sindicato da categoria, cerca de 45% ganham um mínimo por mês. Por conta de duas bonificações que foram incorporadas ao salário (uma a cada cinco anos), Gomes recebe mais R$ 20 mensais. Vai de bicicleta ao trabalho, em uma viagem de mais de uma hora, para poder vender o vale-transporte e assim reforçar a carteira. “Fizemos greve no final do ano para tentar aumentar o salário, mas só deu falta para nós”, diz Gomes, que é solteiro e vive na casa que os pais deixaram para ele quando se mudaram para o interior, em um dos bairros mais violentos da capital cearense.

Sem consenso – Para os economistas que se opõem ao mínimo, ele seria ultrapassado. Representaria um entrave ao livre funcionamento do mercado – empregos deixariam de ser criados por ser um custo alto demais. E isso principalmente nas regiões menos desenvolvidas ou para empresas de pequeno porte. Como quase todo debate de economistas, não há consenso à vista – e outros argumentam que a definição de um piso salarial tem justamente o efeito contrário, ou seja, estimularia a criação de novas vagas à medida que aumenta a renda dos trabalhadores menos remunerados. Com mais dinheiro no bolso, comprarão mais alimentos, roupas, eletrodomésticos, enfim, darão uma força extra para a roda do capitalismo girar. “Se o mínimo fosse fixado num patamar decente, pelo menos 40 milhões de pessoas seriam inseridas na economia brasileira”, diz o deputado federal Paulo Paim (PT-RS), cuja principal bandeira, em 16 anos de mandato, sempre foi a recuperação do salário de referência. O medo de estimular o consumo e alimentar a inflação, segundo Paim, servem de argumento para o governo segurar o valor do mínimo.

Teoria à parte, o fato é que a maioria dos países optou por ter um piso para os salários, mesmo aqueles que embarcaram com tudo na onda neoliberal, como os Estados Unidos e a Inglaterra. O caso inglês é o mais curioso. No início dos anos 80, por iniciativa da primeira-ministra Margaret Thatcher, foram extintos os conselhos de salários que as principais categorias profissionais tinham e que por anos definiram o mínimo que seus profissionais recebiam. O argumento é que era preciso baixar os custos, tornar as empresas mais eficientes e rentáveis. Valeu até o início de 1999, quando Tony Blair criou o salário mínimo válido para todo o mercado de trabalho, pela primeira vez na história da Inglaterra. A regra mais frequente é corrigir o valor periodicamente, de acordo com a inflação acumulada. Na França, a correção leva em conta o porcentual médio das negociações salariais das principais categorias.

Ao contrário do que muitos pensam, não se trata apenas de um penduricalho típico de economias subdesenvolvidas. “O mínimo não foi jogado fora”, diz o economista Marcio Pochmann, secretário do Trabalho do município de São Paulo. Pochmann considera que o processo de globalização da economia, na verdade, estimula a sua criação. “Nos países desenvolvidos, há uma recuperação do mínimo. Nos EUA, o valor ficou congelado de 1980 a 1992, e o governo Clinton deu o reajuste para combater o aumento da pobreza e da concentração de renda”, diz o economista, que lançou, no ano passado, o livro A década dos mitos tratando do tema. Pochmann rebate um argumento das autoridades federais para manter o mínimo no nível em que está, segundo o qual isso evitaria a quebra da Previdência. O problema da Previdência, avalia o economista, é que parte do dinheiro que entra em seu caixa é desviado para outras finalidades que não o pagamento de aposentadorias e benefícios. Por exemplo, para pagar a garantia de renda a seis milhões de trabalhadores rurais que recebem sem nunca ter contribuído. “Eles têm todo o direito de continuar recebendo, mas não acho correto que os aposentados paguem por isso”, afirma. Além disso, o número de contribuintes praticamente estagnou-se – eram 30,4 milhões em 1989 e no final de 2001 somavam 31 milhões, um crescimento para lá de medíocre.

Costureira aposentada, a baiana radicada em São Paulo Perolina Matos Monaco, 72 anos, sente na pele o que todos esses números significam. Recebe mensalmente, desde 1982, a pensão de um mínimo, que não paga nem o aluguel de R$ 400 da casa de dois quartos onde mora com o filho. “Os preços continuam aumentando, e a aposentadoria não dá para nada”, diz Perolina, que complementa a renda com a ajuda de custo que recebe do sindicato das costureiras, como responsável justamente pelo departamento dos aposentados.

Gravata – Para aliviar os gastos da Previdência, o governo passou, há três anos, a desvincular os reajustes das pensões do índice que corrige o mínimo. No ano passado, por exemplo, o aposentado que ganha o piso teve um aumento de 19,3%, enquanto o restante dos pensionistas levou apenas 5,6%. “Com a criação desse mecanismo, em dez anos todos os aposentados brasileiros estarão ganhando o salário mínimo”, prevê o deputado Paim, um dos principais articuladores da campanha pelo estabelecimento de um salário mínimo de US$ 100, em 1994 – patamar que durou pouco. Hoje, o piso brasileiro vale US$ 75. Em maio, poderá chegar a US$ 85. Não paga nem a gravata de muitos bacanas que circulam por aí.