Irritado ao descobrir, em plena lua-de-mel, que não era o primeiro homem na vida da mulher, um agricultor da cidade de Alegre, no Espírito Santo, foi procurar seus direitos na Justiça. Seu advogado se apegou ao inciso IV do artigo 219 do Código Civil, que considera “o defloramento da mulher, ignorado pelo marido”, como motivo suficiente para desmanchar a união. A tese foi bem-sucedida e o casamento acabou anulado. Ao contrário do que possa parecer, o episódio não ocorreu no começo do século passado, mas em junho de 1998. O código que serviu de base à decisão, esse sim, é de 1916, época em que a virgindade feminina era requisito nupcial. No decorrer do século XX, o tabu se esvaiu, mas o conjunto de leis que regulamenta o cotidiano do brasileiro continuava valendo. Depois de 26 anos de tramitação no Congresso Nacional, o texto do novo código foi finalmente sancionado por FHC, mas as novas regras só valerão a partir de 11 de janeiro de 2003.

“O código de 1916 foi feito para uma sociedade agrária”, lembra o jurista Miguel Reale, que tinha seis anos de idade quando a atual legislação entrou em vigor. “O novo código distingue-se por seu espírito social.” Presidente da comissão encarregada em 1969 de modificar o texto do começo do século, Miguel Reale, hoje com 91 anos, entregou o trabalho ao Congresso em 1975. De lá para cá, tramitando entre a Câmara dos Deputados e o Senado, o projeto recebeu quase 1.200 emendas. Boa parte delas foi feita após a promulgação da Constituição de 1988, que, entre outras novidades, estabeleceu a absoluta igualdade entre as pessoas casadas.

Com 2.046 artigos, para começar a valer, o novo código precisa ultrapassar novas etapas. “O período de um ano após a sanção presidencial é fundamental para que a sociedade tome conhecimento das mudanças”, explica o deputado Ricardo Fiúza (PPB-PE), o último relator-geral do código. A primeira divulgação do conteúdo do código, em agosto de 2001, foi seguida por uma avalanche de críticas, segundo as quais ele já nascia velho por não contemplar temas como internet, clonagem e união de homossexuais.

Cerrando fileira com os juristas que discordam dessas críticas está a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, que é professora de direito civil e atuou como consultora na elaboração do código. “A fecundação artificial é uma matéria interdisciplinar que está em constante evolução e precisa de lei especial”, afirma Regina Beatriz, lembrando que há um projeto nesse sentido no Congresso. No caso da internet, os contratos feitos através deste meio eletrônico teriam de seguir as mesmas regras dos documentos escritos e também necessitam de lei própria. Quanto à união entre homossexuais, Miguel Reale lembra que, pela Constituição, a união estável ocorre entre um homem e uma mulher. “Será necessário reformar a Constituição para depois considerar a união estável de homossexuais”, diz Reale. “Isso não impede que haja uma lei, fora do código, regulando o relacionamento dos homossexuais.”

É justamente a harmonia entre a Constituição e o Código Civil que continuará comprometida enquanto vigorarem as normas de 1916. Um grande número de disposições já foi alterado pela prática jurídica ou por leis especiais, mas muitas vezes há dúvidas sobre qual é a norma que está valendo. Para o advogado Arnoldo Wald, professor de direito civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro, esse fenômeno pode gerar instabilidade. “E a insegurança jurídica é um dos elementos que congestionam os tribunais”, afirma Wald. “Quando há dúvida, as partes vão a juízo, o que costuma ser um processo demorado.” E a morosidade é, certamente, uma das maiores queixas do brasileiro em relação ao Poder Judiciário.