Banco Mundial e especialistas de grandes centros de pesquisa fizeram, na década de 90, uma previsão sombria. O Brasil romperia o século XXI com a espantosa marca de 1,2 milhão de pessoas infectadas com o vírus da Aids. A estimativa levou em conta indicadores científicos, mas também a tradicional carga de preconceito que marca as análises sobre países emergentes feitas por estudiosos americanos e europeus. E revelou também o desconhecimento de um programa de combate à Aids tido hoje pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o mais eficiente do mundo. O erro foi considerável. O Brasil abriga atualmente a metade daquele total, cerca de 600 mil pessoas, entre doentes em tratamento e portadores sem sintomas da doença. Apesar da eficiência do programa, baseada em ações gratuitas de prevenção, tratamento e distribuição de medicamentos, o País não consegue zerar ou pelo menos amenizar uma espantosa dívida social na área: dos 600 mil que carregam o vírus no corpo, pelo menos 400 mil, todos entre 15 e 49 anos, portanto em idade sexualmente ativa, simplesmente não sabem disso. O cálculo é oficial, fruto de projeções do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde baseadas em números fornecidos por unidades de doação de sangue, hospitais, maternidades e centros de testagem de todo o País.

Dados do programa mostram que uma parte considerável desses infectados inconscientes é formada por homens heterossexuais das classes C e, sobretudo, D e E, e suas parceiras fixas e eventuais ou apenas eventuais. Esse é o grupo social que menos se testa.

Como ignoram o problema, não se cuidam, expõem a própria saúde e a daqueles com quem têm contato íntimo. Na tentativa de aliviar o problema, técnicos do programa nacional, ONGs, especialistas em saúde pública e comunicadores, apoiados por importantes veículos de comunicação, prometem lançar no dia 13 de outubro uma grande ofensiva para convencer as pessoas da necessidade de se fazer o teste. Batizado de Fique Sabendo, o movimento vai mostrar que uma parcela de brasileiros que se consideram fora de risco pode ter passado muito mais perto do HIV do que imagina – ou mesmo, no limite, tê-lo encontrado. Pretende, sem alarde ou sensacionalismo, levá-los a fazer o exame. “É preciso criar condições para que essas pessoas procurem o teste”, resume o coordenador do programa, Alexandre Granjeiro. “Se não forem sensibilizadas, nunca buscarão o diagnóstico”, completa ele.

Como evidentemente não é possível entrevistar soropositivos que afirmem “tenho o vírus mas não sei”, ISTOÉ ouviu nas últimas semanas relatos impressionantes de pessoas que, até serem surpreendidas pelo HIV, achavam que o assunto não era com elas. Há exemplo de descuidos raros, o que não é diferente da história de vida dos que se acham imunes. Casos como o dos casais Ferreira e Gomes, da educadora Fabrícia Lins, do escritor Samir Thomaz, que relatou a experiência no bom livro Meu caro H, e da advogada Cassandra Lopes são emblemáticos. E também da assistente social Ana Paula Prado, que chegou a perder o filho e, por causa disso, dedica-se ao trabalho na área. Hoje, coordena em Brasília a Ong ABCA Arco-Íris.

Quem decide fazer o exame não fica desamparado. Existem pelo menos 250 Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) no País, que garantem anonimato e gratuidade ao usuário (confira endereços no site www.aids.gov.br). Uma grande entusiasta da campanha é a médica Ester Sabino, que comanda o setor de sorologia do maior banco de sangue da América Latina. Na Fundação Pró-Sangue de São Paulo, Ester lida com mais de 200 mil doações por ano. Em cada dez mil, quatro dão positivo para o HIV. De acordo com estudo da médica Thelma Gonçalez, também da fundação, a prevalência aumenta para 13 casos de soropositividade quando se trata de pessoas doando sangue pela primeira vez. O índice se multiplica porque neste grupo estão os que se expuseram a uma situação de risco, têm resistência a assumir o fato e, por isso, procuram os bancos, onde o teste é obrigatório. A atitude é condenável, pois há o risco, embora mínimo, deste sangue parar no corpo de outra pessoa, como ocorreu com duas pacientes do Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro. “Infelizmente, existem pessoas que usam a justificativa da boa ação para fazer o teste que não consegue encarar. Daí a nossa preferência por doadores de repetição, aqueles que vêm aqui sistematicamente”, diz Thelma.

Há 12 anos no Ambulatório do Doador, o médico Cesar de Almeida Neto tem a delicada missão de avisar o candidato a doador sobre a alteração na sorologia e convencê-lo a repetir o exame, para eventual confirmação. Se é difícil dar a notícia de que alguém tem o HIV, muito pior é recebê-la. “As reações são muito diversas. Os homens são mais fechados, talvez pela dificuldade em lidar com sentimentos ou pela própria suspeita de que se expuseram a situação de risco”, compara o médico. “As mulheres ficam abaladas. Na maioria das vezes, elas são vítimas.” Nos centros comandados pela Prefeitura de São Paulo, a realidade não é diferente.
“A primeira reação é perguntar: ‘Eu não fiz nada, como aconteceu comigo?’ A segunda é chorar”, relata a pesquisadora e psicóloga Maria Teresa de Moraes, de uma unidade na zona leste da cidade. Como se
vê, esse é um problema de todos.

“Tenho trauma de balanças”

“Entre o final de 1995 e janeiro de 1997 fui três vezes a casas de programas. Em uma ou duas delas, não usei preservativo. Sempre fui o oposto do sujeito hiperativo, arrasador. Meu casamento não vivia um bom momento, é verdade, mas sempre foi estável. Continuo casado e tenho uma filha. Em 1997, comecei a emagrecer de forma brutal. Os colegas comentavam, mas eu fingia que nada ocorria. Sozinho, brigava com as balanças. Subia em três ou quatro delas por dia. Até hoje sinto calafrios quando vejo uma balança de farmácia. Só fiz exame no final de 1997, quando parecia que eu iria morrer. Disso me arrependo – passei todo esse tempo colocando minha mulher em risco. Ela não é soropositiva. Se há desconfiança, o melhor é vencer os fantasmas e fazer o exame.”
Samir Thomaz, 39 anos, jornalista, escritor e editor

“Soube no pré-natal. E depois perdi meu filho”

“Recebi a notícia com seis meses
de gravidez, em 1997, no pré-natal. Vinha de um relacionamento estável de cinco anos. Não posso ser enquadrada em nenhum comportamento de risco. Nunca me droguei, tive pouquíssimos parceiros. Pode ter sido o meu companheiro, mas não posso afirmar. Fui discriminada em Brasília. Como sabiam, fizeram de tudo para retardar o parto, evitaram a cesariana
e deixaram-me perambular seis dias por hospitais. Athos – eu queria
com th – morreu na minha barriga. Muitos acham que não devo, mas
um dia vou tentar outro”
Ana Paula Prado, 34 anos, assistente social

“Achei que era erro médico”

“Eu já tinha cinco filhos. Fiquei grávida de novo e fui fazer o pré-natal. Não acreditei quando disseram que tinha dado positivo. Achei que era erro médico. De jeito nenhum podia dar positivo. Nunca fiz nada… Disseram que meu marido precisava testar, mas ele não foi porque estava trabalhando. Continuei levando a vida, igualzinho antes. A nenê nasceu sem nenhum problema. Estava engatinhando quando meu marido ficou com febre, diarréia. Não havia meio de sarar. Fez o exame e deu positivo. Fiquei abismada. Desconfiei muito dele. Discuti para separar, mas sou evangélica. Deram muito conselho para eu não deixar porque era coisa da vida. Eu só não separei porque tive medo de criar meus filhos sem o pai. Eu não tomo medicamento, não tenho nada, mas não sou mais a mesma pessoa.”
Francisca da Silva Gomes, 40 anos, dona-de-casa

“Se não resistir, tome cuidado”

“Francisca sempre foi voltada para os filhos, para o lar. Não desconfiava que eu não tinha uma vida de fidelidade. Eu também não imaginava que estava me infectando. Mas aceitei. O vírus do HIV não ultrapassa o corpo. O importante é a convicção da vida eterna. Tendo boa cabeça, você supera todos os obstáculos. Não consigo mais trabalhar, mas uma instituição filantrópica ajuda em tudo. O portador não pode se abater. E, graças a Deus, todos os nossos filhos negativaram. Mas sempre digo para as pessoas se cuidarem. No casamento, os dois fazem uma aliança. Tem de haver respeito e fidelidade. O homem não quer ser traído, mas quer trair. Se não puder resistir ao desejo de extrapolar na vida sexual, tome cuidado. Que use camisinha.”
Vicente da Silva Gomes, 37 anos, desempregado

“Eu não posso ter preconceito contra mim”

“Apaixonei-me pelo cliente de um colega.
Ele tinha problemas com a Justiça. Sou advogada, filha de militar. São aquelas diferenças radicais que, por um mistério, aproximam as pessoas. Em 2000, tive uma hemorragia. Os médicos não desconfiavam de nada. Mas como emagreci muito, fizeram o teste. Nas primeiras semanas, chorei muito. Por que eu? Depois, o sofrimento deu lugar à serenidade. Talvez pelo fato de ser católica e de presidir a Conferência dos Vicentinos em Candeias, no Recife. Recuperei meu peso e sinto-me bem.
O problema da Aids não é você ter preconceito contra mim, mas eu ter preconceito contra mim.”
Cassandra Lopes, 43 anos, advogada

“Achava que era o segundo. Mas era o primeiro”

“Fui criada no interior de Pernambuco. No início dos anos 90, no Recife, conheci meu primeiro namorado, também minha primeira transa. Terminamos cinco anos depois e deixei de receber notícias dele. Depois, apaixonei-me novamente. Namoramos até 2000. Meses depois de terminarmos, peguei uma pneumonia. Como ele tinha um hospital, fui para lá. Um médico queria testar, mas ele não deixou. Estranhei e fui para outro hospital. Fizeram o teste e não deu outra. Desesperada, disse a ele que tinha entendido o motivo da proibição do teste e o chamei de criminoso. Ele então fez três exames, todos negativos, e aconselhou-me a procurar meu primeiro namorado. A surpresa: ele tinha morrido em 1997, aos 50 anos, de Aids. Achava que era um. Era o outro. Eu poderia ter contaminado o segundo namorado. Felizmente isso não aconteceu.”
Fabrícia Lins, 34 anos, educadora social

“Estou assustado, mas não vou me matar por isso”

“Nasci e fui criado em Pão de Açúcar, interior de Alagoas, na divisa com Sergipe. No início dos anos 90, fui trabalhar como porteiro em Aracaju. Lá, rapaz novo, sozinho, sabe como é… Peguei (transei com) umas duas ou três vezes moças que conheci na rua. Foi pouco, muito pouco, só para matar a solidão, como qualquer homem da minha idade fazia. Voltei para Pão de Açúcar, em 1991. Anos depois, quando já era casado com a Maria Goreti e tinha meus três filhos, um pessoal daqui pediu para eu doar sangue. Ainda brinquei. Disse: ‘Olha, meu sangue é bão. A única sujeira que vocês vão achar é arco (álcool), porque eu gosto de chupá (beber) uma cana de vez em quando.’ O sangue foi para examinar e eles pediram para tirar mais um pouco. Depois, pediram para a prefeitura me levar até lá. Eles perguntaram um monte de coisa e, depois, um me falou: ‘O senhor está com o vírus HIV.’ Eu perguntei o que era e ele me respondeu: ‘É o da Aids.’ Primeiro, perguntei: ‘Mas, gente, como esse negócio pode ter acontecido comigo? Eles falaram que foram as moças do sexo, quase certo. Eu disse: ‘Estou assustado, mas não vou me matar por causa disso não…’ O pessoal me ensinou a tomar os remédio, os cuidado, tudo. Nunca tive nada de doença não. Sô forte. Hoje, tenho consciência. Aqui na cidade todo mundo sabe, a gente não esconde não. De vez em quando, um moleque grita de sacanagem: ‘Aidético, aidético.’ Ligo não. O importante é cuidar da saúde e ensinar as pessoa, para não acontecer mais.”
Daniel Ferreira, 37 anos, trabalhador rural

“Quando o médico falou, desmaiei”

“Sempre trabalhei na roça, plantando e colhendo feijão, milho, arroz. Fiquei muito nervosa quando o Daniel voltou e me contou tudo. Por causa do meu marido, os médicos mandaram tirar o meu sangue para ver se tinha o HIV. Não queria dar o sangue, mas eles me convenceram. Depois, pediram outra amostra. E me chamaram lá. A gente já desconfiava, mas eu não queria aceitar. Sempre fui mulher de casa, simples, dedicada pros filho. E, naquele tempo, achava que essas coisas só aconteciam com gente da bagunça, sei lá, diferente. Hoje, não penso mais assim, de jeito nenhum. É preconceito, aprendi. Mas já desconfiava. Falei: ‘Se fosse notícia boa, eles falavam no telefone mesmo.’ Mas, na sala, continuei muito nervosa, tremendo demais. Comecei a chorar baixinho, assim, só a lágrima correndo. Quando o médico falou mesmo que eu também tinha, desmaiei. Desabei no chão. No fundo eu sabia, mas na hora é muito pesado encarar. Depois disso, conhecemos várias pessoas de organizações que me ajudaram e nos ensinaram as coisas. E eu ensino as mulheres a tomar cuidado aqui em Pão de Açúcar. A gente é pobre, vive com dificuldade. Os amigos das organizações vivem falando: ‘Olha, não larguem o remédio mesmo se faltar coisa em casa.’ Isso já aconteceu, mas hoje a gente toma cuidado. Nossos três filhos, graças a Deus, não possuem o HIV. Isso é tudo na nossa vida. Eu e meu marido pensamos da mesma forma. O resto a gente resolve.”
Maria Goreti Ferreira, 34, trabalhadora rural, mulher de Daniel